terça-feira, 24 de abril de 2007

O cavalo e o cão

Na minha rua, eu e os meus vizinhos, temos assistido a uma amizade, no mínimo estranha. Um cão e um cavalo. Surgem do nada, descem a rua e dirigem-se aos terrenos vazios. O cavalo pasta sob a vigilância atenta de um velho pastor alemã e ambos apresentam aquelas peladas de abandono. Um não vai para lado nenhum sem o outro.
O cão vem sempre à frente, inspeccionando o caminho, se avistar alguém começa a ladrar e o cavalo estaca na posição em que estiver. No passeio, sempre pelo passeio. Depois voltam a carga, o cão sempre à frente, claro, até chegar aos verdes.
Enquanto o cavalo escanzelado se alimenta o cão estaciona na sua posição de segurança e ninguém se pode aproximar sem ouvir uns latidos ameaçadores que afastam os mais curiosos. Isto acontece de manhã, de tarde e infelizmente de noite. De noite. Os cascos do cavalo ecoam pelos paralelos directamente para os ouvidos dos habitantes, e, os latidos do cão ao menor sinal de movimento ou passagem de veículos (já de si menos silenciosos) acabam com o sono descansado de qualquer um.
A revolta contra esta parelha começou a nascer aos pouquinhos entre as comadres. De coisa invulgar e com uma certa piada passou ser olhada com outros olhos e as vozes das comadres chegaram aos compadres. E compadre que se preze não quer cá coisas esquisitas na sua rua! Ainda por cima daquelas que tiram o sono e fazem as comadres ficarem rezingonas!
Foi organizado um grupo de ataque, e, um plano de acção. O Zé da barbearia, o Carlos da Loja, a Benilde das limpezas e João carpinteiro decidiram que o cavalo era muito grande para darem cabo dele sem darem muito nas vistas pelo que se viraram para o comparsa maligno, e, além do mais toda a gente sabia que o cavalo não ia a lado nenhum sem ele. Sem pastor não havia cavalo. Lançaram o isco. Um suculento bife cozinhado em veneno, daquele foleiro mas concentrado. O cão morreu logo ali no passeio. O cavalo ainda o tentou acordar mas no fim de algumas horas resignou-se. O brilho dos olhos negros era um pouco mais brilhante e mais triste. Nunca mais saiu daquele campo.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O vestido

A Dona Rosa lá do bairro sempre fora conhecida por ser a melhor costureira que tinha posto os pés naquela terra mal afamada, e verdade seja dita, fazia coisas que eram um primor. O pormenor dos bordados, as pinças delicadas e discretas, as bainhas invisíveis, os luxuosos vestidos de festa e os vestidos de noiva. Ai, os vestidos de noiva. Verdadeiras obras de arte. Era a costureira mais requisitada e mais dinheiro não fazia porque as mãos eram só duas. Quando a sua única filha Inês foi pedida em casamento Dona Rosa fechou o estabelecimento, entregou as encomendas e disse as pessoas mais próximas que dali em diante e até a cerimónia trabalharia apenas no vestido da filha. Como podem calcular dizer as pessoas mais próximas é o mesmo que dizer a toda a gente, e, passados alguns dias não se falava de outra coisa: o vestido da Inês. Todos comentavam. Bem, sejamos honestos, nem todos. Os homens andavam um pouco fora desta discussão e mais aplicados no campeonato, mas a conversa nas ruas durante uns tempos era dominada por aquele assunto. Discutia-se o estilo, o comprimento da cauda, o véu, quantidade de bordados e o... preço. O preço começou a ganhar destaque e não faltou muito até os homens ganharem interesse neste assunto e começarem a fazer apostas com os palpites das esposas.
Dona Rosa não ligou a nada disto, para dizer a verdade não soube nem a metade pois estava praticamente enclausurada na sua salinha de costura. Ela e a sua “singer”. O tempo foi passando e o dia do casamento chegou.
Os mirones reuniram-se em locais estratégicos para ver a noiva desfilar pela escadaria exterior da casa em direcção ao “Volvo” branco que o pai iria conduzir até a igreja. Mal a porta da casa se abriu ouviu-se um coro de suspiros e depois o silêncio. O vestido era magnífico. A noiva entrou no carro e partiu. A comitiva nupcial também seguiu o mesmo caminho mas voltavam meia hora depois para grande espanto dos populares. O rasca do noivo não apareceu. Fugiu entre a casa dos pais e a igreja. A indignação foi geral e a tristeza abateu-se pelo bairro, não tanto pela vergonha de Inês, que não era muito apreciada por aquelas bandas, mas, pelo vestido. Como podia um vestido tão bonito não ter sido abençoado? Ninguém conseguia perceber. A história foi abafada nos cafés e nas esquinas. Não mais se falou no vestido nem no assunto.
Inês ordenou que o queimassem. Dona Rosa recusou. Escondeu-o da filha na salinha e decidiu que aquele vestido ia ser usado! Pensou que nenhuma das suas clientes o iria querer – um vestido rejeitado, e, também não queria vender a ninguém dali perto pois a história iria chegar aos ouvidos da filha que provavelmente não iria aguentar outra humilhação.
Apanhou a camioneta para a cidade e levou o vestido escondido na cesta das compras. Vendeu-o clandestinamente a uma loja de artigos usados por um quinto do valor, com a condição de que nunca seria exposto na montra. Fez a dona da loja assinar um documento escrito. Não queria correr riscos. A filha não iria aguentar.
O vestido lá ficou esquecido no armazém. Dias. Meses. Anos. A dona da loja já tinha sido atirada para uma cama por uma doença galopante quando chegou para ajudar uma afilhada distante. Lurdinhas era uma moça vistosa da aldeia, ingénua e trabalhadora. Caiu na lábia do filho do alfaiate vizinho e mais tarde na cama dele. Perdeu-se de amores, sonhava acordada e mal abria os olhos para ver que ele não a queria mais e dormia com quantas pudesse apanhar.
Começou a sentir-se evitada e desprezada. Entrou em colapso, lembrou-se das mezinhas de tia Ermelinda e nem sequer pensou duas vezes. Em noite de lua cheia, foi ao armazém, pegou no embrulho, meteu-o no saco, e, caminhou para a praia. Estendeu o vestido, acendeu a vela de igreja, espetou-a na terra e queimou o papel com o nome do filho do alfaiate assim que ouviu as doze badaladas. Murmurou baixinho: ”Vais ser meu, Alberto. Vais ser meu, Alberto. Vais ser meu.”
O vestido foi arrastado pelas ondas, levou-o mar. Assim como levou Alberto, uns meses mais tarde, para a Venezuela em fuga de uma família desonrada e nunca mais ninguém lhe pôs os olhos em cima.
O vestido ainda anda por aí. Flutuando no oceano. Os outros morreram todos. Uma medusa translúcida. Uma caravela portuguesa de tule e folhos. Um fantasma do passado com assuntos por resolver.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Atrasado

Estou atrasado para variar. Ando sempre atrasado. Hoje acordei com uma daquelas sensações estranhas... Sabem quando estamos no banho a lavar o cabelo, a espuma vai descendo, tapa-nos os ouvidos, e, ouvimos tudo assim ao longe? Como se não estivéssemos realmente lá mas do outro lado de uma parede, num outro quarto a escutar as conversas alheias? Acordei assim. A ouvir ao longe aquela voz semi-italiana dos Texas a cantar uma música da qual não me recordo o nome mas que não me sai da cabeça. “you can say what you want but it wont change my mind, I feel the same about you…”.
Já passava da hora no despertador mas não me lembro de o ter ouvido tocar. Nem sei sequer de onde vem a música. Talvez do vizinho do lado? Não interessa. Virei-me para o lado para lhe dar um beijo de bom dia. Ela esta linda. Sempre foi assim. Tem a barriga ligeiramente descoberta e consigo ver a zona do umbigo...não resisti a tocar-lhe. É tão linda. Senti o arrepio a percorrer-lhe o corpo e terminar na cabeça com um ligeiro inclinar para a esquerda. “and you can tell me your reasons but it wont change my feelings…”.
Beijei-lhe o pescoço, e fiquei assim abraçado a ela. Estou atrasado. O despertador finalmente tocou. Agora está na hora de ela acordar. Vai abrindo os olhos com aquela preguiça matinal de gata. Eu vou dando beijos no pescoço que ela agora parece ignorar. O que será que eu fiz? Devo ter feito asneira da grossa ontem... Levanta-se sem me dirigir uma palavra e vai para a casa de banho. Falo para ela. Faço perguntas. Não me responde. Levanto-me para ir ter com ela e pedir desculpa. É sempre melhor pedir desculpa... mesmo sem saber porquê. Ela sai da casa de banho e vem directa a mim. Inclina-se e sinto o braço dela a atravessar-me para abrir a gaveta da mesinha de cabeceira. Sinto uma dor diferente e um leve estremecer da memória que me parte o coração em dois. Ela voltou para a casa de banho e eu segui-a. Atravessei a porta e compreendi. Estou atrasado. A vida passou por mim e eu ando sempre atrás dela.