segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O busto

Acabei de receber as compras. A minha vida agora tem sido muito mais fácil, é só clickar e pouco tempo depois lá estão elas a ser descarregadas na porta da frente. Chegaram as tintas, o verniz o gesso, os pincéis...que encomendei há pouco. Decidi abraçar um novo hobby: o restauro. Não sou muito talentosa mas há uns dias decidi fazer umas limpezas no sótão e encontrei um busto espectacular mas um pouco danificado.
Tinha o nariz partido e algumas mazelas esbranquiçadas no pedestal negro que ainda assim não lhe conseguiam tirar a altivez. O cabelo apanhado, a gola folheada, os ombros distintos e notava-se ainda aquele porte esquecido de nobreza.
Tentei em vão descobrir quem era mas não trazia nenhuma indicação nem me lembro de ver alguém parecido nas fotos de família. As coisas com que estava encaixotado também não ofereceram qualquer pista. Não devia ter sido muito caro no entanto porque aparentava ser de gesso ou um material semelhante. Podia até ter sido feito em série mas não sei bem porquê isso não me parecia muito plausível. Decidi então, como já vos tinha dito, restaurá-lo. Talvez me revelasse alguma coisa no processo ou eu conseguisse descobrir alguma coisa no fundo da minha memória.
Decidi limpá-lo com água e um pano de algodão húmido para começar. Limpo era ainda mais difícil desviar o olhar. O branco salientava a imponência daquele rosto. Sei que é um cliché mas parecia mesmo que me seguia com o olhar.
Refiz o nariz o melhor que pude com o gesso de paris e depois branqueei-o com alguma tinta acrílica branca dissolvida em água. Quando terminei até ficou bem mas achei que havia ali qualquer coisa que não estava bem ou estava qualquer coisa em falta. Quando dei por mim estava a desenhar flores na camisa. Não sei muito bem como fiz aquilo mas consegui desenhar umas rosinhas vermelhas muito pequeninas protegidas por três folhas escuras. Fiquei surpreendida comigo própria e estava com vontade de continuar mas já era tarde e decidi parar para comer qualquer coisa. Mais uma vez parecia seguir-me pela casa e tive de o tapar com um pano para poder comer mas mesmo assim conseguia sentir o olhar a procurar-me.
Fui-me deitar mas não dormi muito bem e quando acordei só pensava em terminar o busto. Conseguia quase ver como iria ficar quando estivesse pronto. Pintei os cabelos de castanho terra queimada. Para a pele tive de fazer algumas experiências até encontrar aquele som de moreno dourado que tinha na minha cabeça. Não me consegui decidir com a cor dos olhos e acabei por pintar o dourado do travessão e do fio que trazia ao pescoço. Quando dei conta já era noite outra vez e decidi ir dormir.
Não dormi bem novamente. Sonhei com o busto toda noite. Com aquela mulher de olhos brancos que me perseguia e me dizia: - Liberta-me! Liberta-me!
Acordei ainda mais cansada do que quando me tinha deitado e assustada. Achei melhor não trabalhar no busto nesse dia mas sentia sempre o seu olhar nas minhas costas e voltei a tapá-lo. Não resultou e comecei a sentir-me um pouco pateta mas não consegui evitar de o virar para uma parede. Foi melhor mas continuava desconfortável.
Trabalhei no computador, fiz algumas compras, reguei as plantas e vi um pouco de televisão no sofá onde acabei por adormecer. Tive o mesmo sonho com aquele pedido que agora parecia desesperado: - Liberta-me! Liberta-me...
Acordei sobressaltada, olhei para o busto e avancei. Sentei-me à mesa e estava determinada a termina-lo. Tirei-lhe o trapo, virei-o para mim e comecei a misturar as tintas até encontrar um castanho luminoso que iria ocupar o seu lugar no branco dos olhos. Uns laivos mais escuros e quase conseguia ouvir aquela voz enquanto terminava.
Quando terminei fiquei a olhar para ela enquanto ela olhava para mim e juro que vi os seus lábios a mexer e o som a formar aquele pedido: - Liberta-me. Não sei bem o que se passou a seguir mas acho que com o medo devo ter atirado o busto para o chão, porque quando dei por mim ele estava estatelado no chão de costas para mim e podia ver os cacos espalhados. Pensei que estava finalmente a ficar doida por estar sempre fechada em casa. Peguei nele para avaliar os estragos ou deitá-lo fora, já não sei bem, virei-o para mim e desmaiei.
Quando acordei foi só tomar consciência do que tinha acontecido e recompor-me para fazer o que tinha de ser feito.
Aquela foi a primeira vez em três anos que saí de casa e fui até ao jardim nas traseiras que pagava ao jardineiro para embelezar todos os meses mas que eu só via da janela. Fiz uma cova e meti lá dentro a cabeça mumificada que estava escondida no interior do busto. Juntei o que restava dele, cobri tudo com terra e achei por bem fazer uma oração.
Fiquei ali alguns minutos a ouvir o vento que parecia murmurar um agradecimento para longe...

A visita

Foi difícil vê-la ali, longe. O cabelo mais curto mas com aqueles caracóis rebeldes que teimavam em surgir contra a sua vontade. Gostei especialmente daquele por baixo da orelha esquerda que lhe protegia o lóbulo e lhe escondia o brinco que não podia usar.
Era a primeira vez que a via desde algum tempo e estava ansioso. Ela deixava-me louco e podia fazer de mim gato sapato se quisesse, mas, parecia optar pelo contrário. Sempre submissa, sempre na minha defesa. Era o meu escudo contra o mundo. Protegia-me.
Não sei se o fazia por ser da sua natureza, ou, se, para me dar aquela sensação de poder que eu não tinha... Ela gostava disso, eu sei. Eu também gostava, ela sabia-o.
Os meus problemas desapareciam. Era só desabafar com ela durante o jantar ou naquela conversa morninha de cama que os meus problemas desapareciam no dia seguinte.
Não sei que tipo de amor era. Carnal, físico mental ou total...daqueles que só se encontra uma vez na vida. As coisas funcionavam bem connosco e éramos felizes. Fomos felizes aqueles anos todos. Eu não desconfiei de nada.
Não desconfiei das dívidas perdoadas nem dos prazos prolongados e entreguei tudo à boa sorte. Agora vejo que fui ingénuo. A boa sorte não dura para sempre.
Foi mesmo difícil vê-la ali com aquele uniforme baço que lhe prendia o corpo esguio que senti vibrar mal me escutou aproximar. O sorriso fácil e solto em crescente suavizava-lhe o rosto.
Virou o rosto levemente para o lado vazio e o sorriso parou. Deve ter sentido o meu olhar que raiava a pena... Ela detestava isso. Era só saudade mal interpretada mas ainda assim tentei mudar a expressão.
Ficamos assim calados durante algum tempo até juntar coragem suficiente para lhe perguntar novamente:
- Porque é que fizeste aquilo tudo?
E ela deu-me exactamente a resposta que eu não queria ouvir:
- Pensei que já sabias... que já tinhas compreendido...
Levantou-se, disse adeus com os olhos e com o corpo, dirigindo-se em direcção ao guarda que a levou de volta à cela.Fomos felizes em tempos, se calhar até demais.