quinta-feira, 28 de junho de 2007

Roupa nova

Era vê-la sentada de lado, virada para a imensidão de sacos que viajavam a seu lado numa qualquer viagem de metro. Uma daquelas igual a tantas outras que nada tem de extraordinário excepto, por vezes, aquela borboleta que entra a voar em círculos para sair na estação seguinte.
Lá ia ela espreitando as compras com um ar de criança num parque de diversões, com tantos sítios para ir que não se sabe bem o que escolher. Ela emanava uma felicidade juvenil que todos na carruagem conseguiam sentir, e, ela já não aguentando o desejo , olha para um lado e para o outro, como quem atravessa a rua e começa a retirar de uma das sacas, ao calhas, uma das peças de roupa nova. Estende-a em cima das coxas. Corta a etiqueta com a chama rápida do isqueiro e levanta-a no ar para a ver uma outra vez. Uma camisola preta de manga ¾ a imitar um casaco de trespasse. Dobra-a cuidadosamente. Outra. E mais outra. Umas calças pretas de cinta descida, um blaser preto com remendos nos cotovelos e uma aplicação prata na gola, uns jeans pretos, uma blusa clássica preta, uma blusa de estilo oriental com motivos antracite, top’s pretos, t’shirts pretas, ... Outra. E mais outra.
O brilho nos olhos aumentava a cada peça nova que pegava e as pupilas pareciam até dilatar para um tamanho fora do normal, transformando os seus pequenos olhos castanhos em dois botões negros.
Pegou em todas as peças que tinha dobrado cuidadosamente e tentou meter tudo dentro da maior e mais discreta saca que trazia consigo. Não conseguiu e ficou um pouco atrapalhada, como se quisesse esconder a roupa nova que antes mostrara a quem quisesse ver. O aviso sonoro indicou a próxima estação e a aflição cresceu, acabando por meter parte da roupa numa saca translúcida com letras laranja vivo. Levantou-se, respirou fundo, carregou no botão para abertura da porta e saiu o mais discretamente possível. Acredito que não quisesse dar nas vistas, as más línguas nunca são muito simpáticas para as viúvas recentes.

Página em branco

Onde é que ela tinha ido? O que tinha feito? Teria sido feliz? Infeliz? Teria saído sozinha? Foi um dia para esquecer ou um dia insignificante?
Aquela página em branco tolhia-lhe o espírito.
Ela tinha partido há cinco meses, três dias e vinte e uma horas, e, desde aí ele tinha lido todos os seus diários para a manter viva. Leu-os mais de que uma vez, repetidamente, até saber todas as palavras, todas as vírgulas e todas as pausas. Ao fim de um tempo recordava-se da vida dela como se fosse a dele. Todos os pormenores, todos os detalhes estavam ali transcritos naquela letra de professora primária. Não saltou sequer aqueles momentos embaraçosos que nenhum marido quer verdadeiramente saber. Leu tudo e para ele era como ter estado com ela todos os dias da sua vida. Todos, excepto aquele. Uma página em branco com a data cuidadosamente escrita numa imensidão de linhas em branco que pareciam não ter fim. 8 de Julho de 2002. A escrita tão cuidadosa que as próprias curvas das letras davam a sensação de aquele ter sido um dia diferente e especial até. Ela não avançou a data como já tinha feito com outros dias. Deixou a folha em branco para recordar. Mas o quê? O quê?
Era só um dia que não tinha sido partilhado com ele mas se ele não soubesse nada sobre esse dia então também não sabia nada sobre ela. Era mais uma estranha com que se tinha cruzado e isso era um pensamento aterrador. Lia e fazia esquemas temporais, ligava à família, aos amigos, aos colegas de trabalho, vasculhou jornais e procurou recibos antigos. Nada. Era um vazio insuportável que ninguém conseguia preencher. Desleixou-se de tudo menos da vida dela e daquele dia, daquela página em branco. Foi-se esquecendo de si. Confundiu a sua vida com a dela e vivia num limbo de memórias falsas, num quarto imundo de recortes, fotos, esquemas, calendários e folhas de diários espalhadas pelos cantos e estragadas pela humidade forçada do quarto.
Quando as pessoas nos fogem agarramo-nos à mais pequena coisa para as trazer de volta para junto de nós, mesmo que essa coisa seja uma insignificante página em branco num diário velho.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Bicho que a gente come...Parte dois

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Não sei quantas horas estive inconsciente. Só me lembro daquele episódio repugnante que preferia esquecer. Devo ter desmaiado de seguida. Está tudo muito silencioso. Sinto-me fraco e apesar de tudo o que se passou sinto fome. Devo ter estado inconsciente mais tempo do que aquele que penso.
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Eles estão mortos. Todos. Por todo lado vejo vermes esticados. Funcionou. Morreram todos. Finalmente estamos livres. Vamos poder voltar para as nossas casas e os nossos países.
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Continuo com fome. Por mais frutos que coma continuo com fome. Sinto-me fraco.
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Passaram dez dias desde que acordei. Continuo com fome. Sinto-me cada vez mais fraco.
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Estou cada vez mais fraco e mais forte. Não sei explicar. Sinto uma fome como nunca senti mas por outro lado os meus sentidos estão cada vez mais eficazes, consigo percorrer distâncias incríveis num curto espaço de tempo e a minha força aumentou consideravelmente. Continuo com fome.
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Vinte dias. Continuo com fome.
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Já não sei quanto tempo. Já só sinto fome.
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Fome.
...
Fome.
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Ouvi passos distantes. Dirijo-me para lá mesmo antes de pensar nisso. Será que finalmente me vieram buscar? Ouço vozes, conversas soltas trazidas pelo vento. Espero que tragam comida. Tenho tanta fome.
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Encontrei-os. São um grupo de cinco. Armados. Militares de reconhecimento. Há qualquer coisa que não está bem. Não vou ter com eles e espero pelo momento certo. A chuva começa a cair. Continuo a segui-los de perto.
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Encurralei-os numa escarpa. Alguma coisa está a tomar conta de mim.
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A fome. Não consigo controla-la. Ataco-os de surpresa e sem piedade. As armas não me atrasam e as minhas feridas parecem sarar logo de seguida. Tento resistir mas não consigo. A fome tomou conta de mim. Sinto o odor do sangue a entrar-me no nariz, a inundar-me os pulmões e a inebriar-me os sentidos. Desfaço um dos cadáveres com os dentes. E mais um. E outro. Até não restar nenhum vestígio deles.
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Levanto-me e vejo o meu reflexo numa poça de agua. O rosto ensanguentado e penso...
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Parece que é verdade... sempre somos aquilo que comemos.
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Tenho fome. Muita fome.
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Acho que vou para casa. Não vão negar entrada a um dos seus.
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Leonardo

Era uma pessoa normal, tanto quanto se pode ser. Um pouco isolado talvez, e conheciam-se-lhe poucos romances. Falava pouco com os vizinhos, só o estritamente necessário. Tinha um carro pequeno, branco e barato. Poderia até dizer-se que era uma pessoa triste não fossem aqueles dias em que aparecia com um sorriso de alegria secreta e maliciosa.
Começou a trabalhar lá no museu mal saiu da faculdade e foi subindo de posto. Era um trabalhador exemplar. Não havia trabalho que ficasse por fazer, nem que para isso tivesse que trabalhar a noite toda. Falava tanto com os colegas como falava com os vizinhos. Almoçava sozinho os restos do jantar que trazia de casa e que aquecia suavemente no microondas da sala comum. Fazia isto o mais rápido que podia e depois ia passear pelo museu. Gastava os seus restantes 56 minutos de pausa para almoço a passear pelo local de trabalho. Alguns consideravam isto estranho mas ele nem sequer prestava atenção aos comentários. Era vê-lo circular calmamente pelo museu e parar sem aviso prévio para ficar a admirar uma peça nova. Nos dias seguintes apenas aquela peça interessa...Até parecer ter retirado toda a informação, todas as mudanças de cor e luz, o pormenor das pinceladas curtas e precisas. Depois volta à rotina dos passeios até encontrar uma nova vítima para analisar com os seus olhos luminosos. È assim que o encontramos hoje: a olhar para uma peça nova como se não existisse mais nada para ver. Um estado hipnótico quebrado apenas pelo lembrete do telemóvel indicando que está na hora de ir trabalhar.
O trabalho na secção hoje está atrasado e mais uma vez voluntariou-se para umas horas extraordinárias. Diz ele que não tem família em casa e o dinheiro faz-lhe jeito. Na verdade não precisa mas quer vir para o museu.
Vai a casa tomar um banho, trocar para uma roupa mais confortável e jantar qualquer coisa rápida. Pega na caixa dos comprimidos e sai. Tudo muito rápido com ansiedade crescente para não chegar tarde. Entre no café da frente e compra cinco cafés para levar, acelera o passo ao atravessar a rua e chega ao museu no momento exacto: a troca de turnos. Oferece dois cafés aos seguranças da noite que sorriem e agradecem a amabilidade inocente, uma coisa rara.
Ruma para a sua sala bebendo calmamente um dos cafés restantes. Adianta algum serviço enquanto controla o tempo.
Vinte minutos devem ser suficientes.
Sai da sala silenciosamente e esgueirando-se para não ser visto pelas câmaras dirige-se ao gabinete de segurança. Dormem os dois nas cadeiras. Aproxima-se, desliga os alarmes e põe o sistema de vídeo em loop. As coisas que se conseguem aprender na Internet são realmente fantásticas. Ao ir para a secção 3 passa na sua sala e apanha o porta-projectos que tinha trazido dois dias antes e a sua pequena mala de ferramentas.
Pára diante do quadro, retira-o da parede e vira-o ao contrario. Retira a tela com muito cuidado e substitui-a pela cópia que fez em casa, pormenor a pormenor. Coloca tudo no sítio e confirma os pormenores. Guarda o porta-projectos e a mala na sua sala, pega nos dois cafés extra e volta ao gabinete de segurança. Substitui os cafés dos seguranças, deixa-os com a mesma quantidade de líquido e no mesmo local, activa os alarmes e retira as câmaras do loop. Volta sorrateiramente para a sua sala, fecha a porta atrás de si e continua o seu trabalho como se nada se tivesse passado.
Acabou o trabalho. Vai para casa e a ansiedade agora parece surgir do nada, mal consegue rodar a chave e entra em casa com uma azelhice descabida. Coloca a tela na parede, acende a lareira e senta-se no sofá. Admira-a. Absorve todo o seu conteúdo. Agora é sua. Fica assim durante horas até já não haver mais nada para olhar porque já faz parte dele.
Levanta-se, retira-a da parede e atira-a para a lareira. Para junto das cinzas das outras, e, nem sequer olha para trás quando se desfaz em labaredas soltando aquele odor metalo-químico da tinta.
Sobe as escadas e vai tomar um banho. Já são horas de voltar ao trabalho.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Bicho que a gente come...

Não se sabe bem como chegaram mas foi à cerca de dez anos. Parece um lugar comum batido num filme de ficção B mas é verdade. Destruíram tudo o que apanharam . Mataram milhões de pessoas e outras tantas tiveram de abandonar as suas casas. Agora vivemos nos pólos e nos desertos. Os extremos não são bons para nós, mas também não são para eles, e, impedem-nos de atacar. Ficamos protegidos aqui, por enquanto. O clima está a mudar rapidamente...
Ainda não se conseguiu descobrir uma fraqueza, um calcanhar de Aquiles. Resistem a tudo, regeneram-se, e, quando cortamos ou esmagamos um, surgem dois. Nada parece funcionar e o seu apetite não para de crescer. Mal sentem a presa multiplicam-se exponencialmente em poucos minutos e atacam, Rodeiam a presa como formigas e em menos de cinco minutos alimentam-se de um ser humano. É impossível escapar. Se nos encurralam passámos a história.
Não é um espectáculo bonito de se ver.
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Trabalho no CIB(A) – Centro de Investigação Biológica, secção do Alasca. Aqui estamos reunidos, militares e cientistas de todas as partes do antigo mundo, para tentar encontrar uma saída. Uma maneira de os destruir. Eu fui o escolhido para pilotar o avião que vai testar a 136, um químico de acção letal que tem funcionado bem nas simulações de laboratório. Vou aspergir quase toda a floresta tropical. Estão todos confiantes e acreditam que vamos reconquistar as nossas casas. Eu não crio muitas esperanças, afinal é a arma 136, mas ainda assim estou ansioso. Estamos todos. Ninguém se aventura para essas regiões há dois anos. Mas eu vou. Amanhã.
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A paisagem é linda. Verde. Infindável. Devia ser assim antes das madeireiras terem acabado com ela. Deve ser por isso que ela os abriga. Uma pequena vingança fria. Já ando a sobrevoar a floresta a cerca de duas horas. Ainda tenho combustível e 136 para mais de três horas mas só daqui a alguns dias saberemos o resultado.
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Um dos motores falhou e tentei aterrar numa clareira, não sei bem porquê, afinal vou morrer e vou ... e uma explosão é sempre mais agradável do que o que me espera, mas nunca se sabe: o 136 pode ser mais rápido e eficaz do que se pensa.
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Não é. Perseguiram-me toda a noite. Ouço-os moverem-se rapidamente no escuro e sinto o odor fétido característico. Corro sem ver para onde vou nem o que se passa a minha volta. Não quero morrer assim.
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Fiquei encurralado numa parede de pedra. Corri até não poder mais e quando me virei já lá estava um. Não posso subir nem fugir, já o consigo ver a dividir. Vejo outros a chegar. Aqueles vermes nojentos com dentes afiados. Umas sanguessugas verdes com um apetite voraz. Eram dois, agora quatro. Daqui a pouco oito e depois dezasseis. Quando der conta já não existo debaixo de uma imensidão de vermes que me arrancam a carne como um exército de formigas assassinas. Um deles avança para mim e sinto medo. A adrenalina dispara e lembro-me de uma coisa que me diziam quando era puto. Agarro o que se dirige para mim e arranco-lhe a cabeça com uma dentada. Como-o Como-os a todos. Um por um. Uma gelatina viscosa e verde com alguns pedaços de cartilagem crocante que me dão voltas ao estômago. Mastigo bem. Um por um e imagino que são coxinhas de rã. Mastigo bem e sinto estômago a dar voltas e a revoltar-se. Aguento. Como-os a todos. “Bicho que a gente come é bicho que não come a gente” – dizia a minha avó Anabela.
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Vértice

Fico sempre triste neste dia... foi a última vez que o vi. A saudade é uma dor de quebra. Nunca mais fiquei completa. Era o amor da minha vida. Aquele Amor.
Ele apareceu no restaurante pela primeira vez a uma terça à noite, pediu o prato do dia e comeu sozinho. Tinha um ar tão sozinho. Voltou na quinta e atendi-o novamente.
Ele era bem parecido e aquele fato cinzento fazia parecer importante. Não resisti e meti conversa. Ele também. Voltou Sexta, depois segunda, depois quarta... foi voltando. Foi assim que começou. Saíamos à noite, depois da cozinha fechar, e, éramos felizes. Muito. Ao fim de seis meses engravidei. Acidentalmente. Não sabia como lhe havia de dizer. Não disse. Tive medo que pensasse que o estava a tentar prender. Decidi esperar e guardar segredo por uns dias. Agora penso que não o devia ter feito, mas fiz. Foi a minha escolha.
Ele desapareceu. Nunca chegou a saber que tinha uma filha. Nunca a chegou a conhecer. A nossa filha. E a nossa neta. A minha filha é mais parecida comigo mas a minha neta é a cara chapada dele. Tem aquele aspecto importante e o tempo parece não passar por ela como passa para toda a gente. É linda. É a alegria e orgulho desta casa. Nunca as conheceu... é uma pena. É uma dor que não se apaga.
Tanto quanto sei abandonou-me. Sem uma palavra. Sem uma notícia. Abandonou-nos, a mim, e, a minha filha. Abandonou-nos, a nós, e, a mulher. Foi ela que apresentou queixa. Nunca mais ninguém o viu mas não consigo guardar mágoa... e, se ele voltasse, eu ia estar de braços abertos para o agarrar e jamais o ia deixar partir outra vez. Seria meu para sempre.