quinta-feira, 25 de março de 2010

Anel

Hoje nada mudou.
Tudo se repete,
é um anel.

Talvez amanhã pare
e o verde da pedra
não seja de fel

porque a prata enferruja
e corpo se corta
naquilo que não presta.

A rapariga na missa

Ela chegou tarde em fôlego.
Entrou por entre as pessoas e caminhou com dificuldade pelos espaços estreitos para o seu corpo cansado. Viu um lugar no centro e aproveitou. Ficou sozinha a um canto do banco enquanto o padre falava e aquele local sagrado se tornava num momento de reflexão colectiva. Ela aproveitou o momento para descansar e sentiu o peso nos olhos. A cabeça tombava ligeiramente como quando adormecemos no autocarro e cada paragem é um pequeno momento de tortura, mas aqui perpetuado pelo grupo coral, que insistia em iniciar os cânticos com picos de louvor. Ela estremecia e ouvia ao longe as teclas do órgão acompanhadas pelas vozes do povo caminhando em peregrinação para a comunhão. Por momentos parecia que ia tombar mas ela lá se recompôs. Conseguiu a tempo não cair sobre o povo que caminhava. Levantou-se para a bênção final e sentou-se rapidamente para os avisos semanais. "Foi encontrado um porta-moedas com algum dinheiro que se..." e as palavras fugiam e instalava-se o cansaço novamente. A respiração abrandou. Sentiu os fieis a abandonar a igreja e a luz a entrar pela porta. O barulho parou. A luz desapareceu.
Algumas pessoas comentavam, criticavam e gozavam. Adormeceu na missa. Que vergonha.
Foi o padre que ao vir fechar as portas a veio tentar acordar sem sucesso.
Descansava em paz.

domingo, 6 de abril de 2008

poema

Ela acordou e ele não estava lá. Desapareceu naquela manhã.
Procurou-o por toda a parte e não o encontrou.
Tornou-se água estagnada em jarra de vidro. Ficou pairando no ar da casa esperando o seu regresso mas ele não regressou.
Tornou-se gaivota e procurou ansiosa. Tornou-se condor e procurou mais longe.
Pensou que alguém o tivesse levado. Tornou-se nuvem e escreveu no céu: “Devolvam-no.”
Ninguém o devolveu.
Tornou-se estrela e escreveu no céu com as suas irmãs: “Libertem-no. Deixem-no voltar.”.
Ele não voltou.
Tinha a certeza que o tinham levado. Tornou-se mosca e espiou todas as casas. Tornou-se exército de formigas e invadiu todas as casas. Ele não se teria ido embora assim. Não o encontrou.
Tornou-se pomba e ofereceu a sua paz em todas as esquinas mas ninguém o devolveu.
Tornou-se rato, gato e cão e vadiou pelas ruas.
A sua dor cresceu e tornou-se corvo enraivecido que atacou os campos.
Tornou-se enxame e atacou mas ainda assim ninguém o devolveu. Ninguém o libertou.
Tornou-se rocha e destruiu as casas. Tornou-se cavalo e cavalgou pelos montes. Quando se cansou tornou-se vento e difundiu-se em todas as direcções.
Não regressou. Ninguém o libertou. Ninguém o devolveu.
A sua dor tornou-se insuportável e tornou-se chuva que percorre o mundo. Quando as suas lágrimas tocam o chão ainda se ouve a sua pergunta: “Onde está o Amor?”.

Ninguém lhe respondeu.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Refrão

last night i heard you cry,
last night i heard you scream,
last night it was all over,
all over about your dream

last night i heard you cry,
last night i heard you scream,
last night it was all over,
all over about your dream

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

161.5

Decidiu parar naquela frase, não se sabia bem porquê. Era a quinta frase da página 161 do livro que andava a tentar terminar faziam já alguns dias. “And so it is not to be wondered at if he grew up a little spoilt, a little fond of his own way and a little inclined to think well of himself.”. Era uma conclusão fundamental para a construção da personagem e parecia até que se aplicava a ele próprio e não seria até de estranhar que ao encontrar essa frase se tivesse decidido a parar para reflectir sobre a personagem que era ele próprio e a sua construção. O livro não era nada de extraordinário e o facto de estar a ler fora do âmbito da sua língua materna conjugado com um inglês “austeniano” não ajudavam em nada a leitura demorada que já estranhavam os vizinhos do metro.
Aquela frase ali solta e estática parecia até um desafio lançado unicamente para ele pela autora desconhecida. Seria um desafio, desabafo ou acusação? Ficou na dúvida até os seus sentidos se sintonizarem na rapariga que agora entrava e se tentava agarrar com uma das mãos enquanto com a outra tentava não deixar cair o waffle com chocolate que libertava um vapor de chocolate negro e quente em toda a carruagem provocando um efeito Pavlov generalizado. Uma rapariga de cabelos negro e encaracolados que percorreu a carruagem, se sentou ao seu lado e abriu o Manual de Odontopediatria na página 161. Isso surpreendeu-o mas não tanto como o facto de a quinta frase que aparecia sublinhada a grafite suave, talvez de um lápis número dois, ter sido sussurrada: ”Os pais e a criança deverão ser orientados e tranquilizados.”.
Sentiu-se desconfortável e até observado embora não soubesse por quem mas conseguia sentir o aumento gradual do número de olhos perscrutando na sua direcção certamente sentindo o seu desconforto. A temperatura pareceu aumentar e o ar ficou mais pesado parecendo arrastar consigo pequenas gotas de suor para o fundo da nuca que deslizavam pelo pescoço. Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Era melhor sair antes que a situação fugisse do seu controlo. O controlo não estava habituado a fugir-lhe nem ele estava habituado a que ele lhe fugisse. Saiu do metro sem saber bem onde estava e subiu a rua, seguiu em frente sem olhar para trás afastando-se do barulho, das montras, das pessoas e daquele cheiro enjoativo e quente de chocolate que teimava em não lhe sair da roupa. Deu por si no meio do cemitério, em frente a quinta campa da secção 161. Era ali que ele descansava. Viu as tulipas frescas e as velas acesas e soube que ela tinha estado lá. Ela ia visita-lo frequentemente, ele não. Sentia que a culpa tinha sido dele, se calhar excesso de zelo ou talvez escassez de orientação como dizia o livro.
Não sabia o que tinha corrido mal mas sabia que tinha culpa. E saudades.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Chá das cinco

- Então? Fui a última a chegar?
- Não.
- Quem falta?
- Advinha...
- Oh... Também parece que faz de propósito para chegar tarde.
- Não sejas mázinha Fome... ainda é cedo. O chá ainda não está pronto. E tu sabes que ela demora mas vem sempre, podemos sempre contar com ela.
- Pronto, está bem, já não está aqui quem falou. Precisas de ajuda?
- Não. Vai ter com as outras à sala que eu vou acabar as coisas na cozinha.
- Queres que ponha a mesa?
- Não é preciso, a Maldade já preparou tudo. Ela tem jeito para a “mise en place”.
- Sim, ela tem olho para os pormenores.

- Olá meninas.
- Olá Fome.
- Olá. Podes-te sentar aqui. A Ira disse que esta cadeira era mais resistente e já não deve acontecer o mesmo de semana passada...
- Não comeces...
- Não faz mal, eu sei que estou a engordar, não consigo evitar. Só me apetece comer.
- Tens de fazer dieta.
- Para quê?
- Para ficares mais bonita.
- Com esta idade? Pois sim...
- Estamos preocupadas contigo, só isso.
- Tens feito as análises?
- Tenho. É o costume. Colesterol e triglicerídeos.
- Qualquer dia dá-te uma coisinha má.
- É preferível morrer com doenças...é um bocado triste morrer saudável.
- Não sejas parva...mas se isso acontecer posso ficar com o teu serviço de chá? E os talheres de prata?
- Podes. Eu escrevo no testamento que são para a minha amiga Cobiça, mas olha que vais ter de esperar. Não se livram de mim tão facilmente.
- Não faz mal, eu espero... Olha! Deve ser a Vingança. Vou abrir.
- Obrigado.
- Que trazes aí Ira?
- Brownies.
- Ai que maravilha! Ainda estão quentes. Já sinto o chocolate.
- Que chá preferem meninas? Verde ou Preto?
- Preto.
- Preto.
- Olá. Brownies. Que bom. Já estava com saudades dos teus brownies Ira.
- Já somos duas...
- Ainda bem que os fiz então. Estávamos a decidir o chá. Verde ou Preto?
- Preto.
- Decididamente preto. Uma coisa forte para nos animar.
- Sim.
- Trouxeste o jogo Maldade?
- Já sabes que nunca me esqueço de nada... ia lá deixar o jogo em casa?
- E qual trouxeste.
- Trouxe um novo, “Settlers de Catan”.
- É de quê?
- Estratégia.
- Os meus favoritos.
- Já fui.
- Eu também Fome.
- Ná, é fácil, vão ver.
- Já são cinco. Começamos?
- Sim, sim... que os brownies já estão a implorar que os devore.
- Faz-te a eles Fome.

Reunião de família II

Eu tenho a certeza de que ele me anda a trair com aquela branquela! Tenho a certeza! Sempre reparei nos olhares prolongados, no humedecer dos lábios, nos cumprimentos demorados... mas ignorei. Nunca pensei que ele fosse fazer uma coisa dessas ao primo. Ele matava-o! Desde que ele se foi embora as dúvidas instalaram-se. Ele, ora ignora-me dias a fio, ora vai para o roupeiro e fica a olhar para os Sapatos durante horas. Ela é capaz de tudo. Bem sei como ela explorou aqueles anões estes anos todos, e agora sem dinheiro, sem nada, é capaz de tudo para voltar para a sociedade. Detesto que ela venha cá ao palácio mas ele insiste, dizendo que ela é família. Sabe que eu não gosto e ainda me obriga a ser eu a fazer o convite! Odeio-a. Não suporto vê-la assim tão magra, tão elegante. Deve ser uma daquelas dietas novas. Eu não consigo manter nenhuma, cada vez me apetece comer mais e cada vez estou mais gorda. Ela deve é passar fome, só pode ser isso, porque aquela boa forma na idade dela não é natural! Se ao menos eu conseguisse deixar de comer.
Lá vem ela e ele já a está a comer com os olhos. Olhem só: começa por baixo e vai subindo discretamente, discretamente. Qualquer dia apanho-os! Eu bem mando os meus espiões segui-lo mas eles nunca voltam. Qualquer dia não há um único rato na cidade. Ainda bem que a madrinha me deu umas dicas e eu lá consigo transformá-los em criados fiéis. Não confio em mais ninguém nestes assuntos tão particulares. Mas custa-me, fico sempre muito cansada. E com fome. A magia exige muito de mim.
Oh, ohh, lá está o aperto de mão suave, prolongado, suave, quase sensual... Eu vou descobrir. Já estou com fome só de me enervar...e ainda por cima depois de jantar temos o concerto de flauta daquele músico estranho e enfadonho. A música é completamente banal mas o meu marido adora-a. Eu por outro lado, sempre que ouço aquela flautinha insípida encho-me de tédio e de fome, e não é a jantar duas vezes seguidas que eu vou recuperar a minha silhueta!
Lá vão eles... conversinhas, segredinhos e risinhos. Eu vou apanhá-los, e, quando os apanhar eles vão ver! Vou pôr em prática mais um ou dois feitiços que a madrinha me ensinou... Ah! Javali assado, adoro javali.

Miséria e podridão

Conseguia sentir as térmitas a corroer por dentro a perna, escavando túneis e zunindo não o deixando dormir.
Já tinha visto um buraquinho ou outro junto ao calcanhar escurecido, e, aquele presságio de pó acumulado em cima do cartão humedecido. Naquelas manhãs cinza arrumava tudo o mais rápido possível para ser um dos primeiros a chegar e ter direito a alguma comida ainda quente. Não era propriamente por fome mas para sentir o calor que se esfumava e embatia naquele rosto velho, calejado e frio. Era a melhor coisa do mundo. Havia noites, e havia dias, em que sonhava com aquela água de lavar café a esfumar e a envolve-lo em fios de calor como uma aranha a envolver a sua presa em delicados fios de seda. Fazia lembrar... Fazia lembrar outros tempos que recordava com algo que ele sabia ser diferente da saudade mas não sabia bem definir. Não encontrava um bom termo e depois esquecia enquanto terminava o pequeno almoço rarefeito.
Caminhava ao ritmo de um compasso oco que ressoava em todo o corpo. Ele sabia que isto era o princípio da podridão, a miséria já tinha chegado há muito.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Encontro

Enquanto caminhava sentia que já vinha tarde mas pensava constantemente que ainda dava tempo.
Tinha estado preso e não havia nada a fazer. Tinham-no vindo buscar a casa para um interrogatório. Quando ouviu o carro chegar pensou esperançosamente que tivesse chegado mais cedo mas mal afastou a cortina e os viu aproximar da porta percebeu imediatamente que era um mau sinal. Hoje não era um bom dia para o virem buscar. È claro que estava preparado mas o desanimo transparecia na sua cara barbeada de fresco.
Já tinha aquele marcado desde a última vez que tinham estado juntos. Uma sexta-feira à noite em que se sentia particularmente só, até ela aparecer.
Levaram-no para a esquadra e ele entrou calmo como de costume, já estava habituado a estas visitas. Era o melhor no seu ramo. Ao entrar, quase conseguiu sentir o cheiro dela a esvanecer, como quando ela saía da cama muito devagarinho. Estava a escapar-lhe.
Foi directo para a sala de interrogatórios e sentou-se na cadeira almofadada junto do gravador retrogrado. Pensou que talvez fosse rápido e ainda desse tempo, afinal ele já se preparava para aquilo há muito tempo. Ele entrou finalmente. Um homenzinho calvo e patético, um verdadeiro monte de lixo urbano.
Começou o interrogatório e o confronto com as provas foi esmagador, não havia maneira de escapar. Conseguiu uma confissão. Olhando para ele ninguém diria que aquele monte de esterco contemporâneo recrutava mulheres pela Internet que pouco tempo depois apareciam mutiladas a boiar no rio. Finalmente tinham-no apanhado, foi difícil mas conseguiram.
Já sentia o calor do seu corpo a deixar os lençóis foleiros que tinha na cama e enquanto caminhava sentia que já vinha tarde mas pensava que ainda havia tempo.
Quando finalmente chegou junto da porta viu o papel velho e rasgado enfiado na frincha larga entre a porta e a soleira. Só dizia isto: ”O teu tempo acabou, vemo-nos depois.” Amarrotou o papel com fúria, abriu a porta e atirou o casaco para cima do cabide. Sentou-se pesadamente no sofá e percebeu que tinha demorado imenso tempo para encontrar alguém como ela. Era cada vez mais difícil encontrar uma puta de qualidade.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O busto

Acabei de receber as compras. A minha vida agora tem sido muito mais fácil, é só clickar e pouco tempo depois lá estão elas a ser descarregadas na porta da frente. Chegaram as tintas, o verniz o gesso, os pincéis...que encomendei há pouco. Decidi abraçar um novo hobby: o restauro. Não sou muito talentosa mas há uns dias decidi fazer umas limpezas no sótão e encontrei um busto espectacular mas um pouco danificado.
Tinha o nariz partido e algumas mazelas esbranquiçadas no pedestal negro que ainda assim não lhe conseguiam tirar a altivez. O cabelo apanhado, a gola folheada, os ombros distintos e notava-se ainda aquele porte esquecido de nobreza.
Tentei em vão descobrir quem era mas não trazia nenhuma indicação nem me lembro de ver alguém parecido nas fotos de família. As coisas com que estava encaixotado também não ofereceram qualquer pista. Não devia ter sido muito caro no entanto porque aparentava ser de gesso ou um material semelhante. Podia até ter sido feito em série mas não sei bem porquê isso não me parecia muito plausível. Decidi então, como já vos tinha dito, restaurá-lo. Talvez me revelasse alguma coisa no processo ou eu conseguisse descobrir alguma coisa no fundo da minha memória.
Decidi limpá-lo com água e um pano de algodão húmido para começar. Limpo era ainda mais difícil desviar o olhar. O branco salientava a imponência daquele rosto. Sei que é um cliché mas parecia mesmo que me seguia com o olhar.
Refiz o nariz o melhor que pude com o gesso de paris e depois branqueei-o com alguma tinta acrílica branca dissolvida em água. Quando terminei até ficou bem mas achei que havia ali qualquer coisa que não estava bem ou estava qualquer coisa em falta. Quando dei por mim estava a desenhar flores na camisa. Não sei muito bem como fiz aquilo mas consegui desenhar umas rosinhas vermelhas muito pequeninas protegidas por três folhas escuras. Fiquei surpreendida comigo própria e estava com vontade de continuar mas já era tarde e decidi parar para comer qualquer coisa. Mais uma vez parecia seguir-me pela casa e tive de o tapar com um pano para poder comer mas mesmo assim conseguia sentir o olhar a procurar-me.
Fui-me deitar mas não dormi muito bem e quando acordei só pensava em terminar o busto. Conseguia quase ver como iria ficar quando estivesse pronto. Pintei os cabelos de castanho terra queimada. Para a pele tive de fazer algumas experiências até encontrar aquele som de moreno dourado que tinha na minha cabeça. Não me consegui decidir com a cor dos olhos e acabei por pintar o dourado do travessão e do fio que trazia ao pescoço. Quando dei conta já era noite outra vez e decidi ir dormir.
Não dormi bem novamente. Sonhei com o busto toda noite. Com aquela mulher de olhos brancos que me perseguia e me dizia: - Liberta-me! Liberta-me!
Acordei ainda mais cansada do que quando me tinha deitado e assustada. Achei melhor não trabalhar no busto nesse dia mas sentia sempre o seu olhar nas minhas costas e voltei a tapá-lo. Não resultou e comecei a sentir-me um pouco pateta mas não consegui evitar de o virar para uma parede. Foi melhor mas continuava desconfortável.
Trabalhei no computador, fiz algumas compras, reguei as plantas e vi um pouco de televisão no sofá onde acabei por adormecer. Tive o mesmo sonho com aquele pedido que agora parecia desesperado: - Liberta-me! Liberta-me...
Acordei sobressaltada, olhei para o busto e avancei. Sentei-me à mesa e estava determinada a termina-lo. Tirei-lhe o trapo, virei-o para mim e comecei a misturar as tintas até encontrar um castanho luminoso que iria ocupar o seu lugar no branco dos olhos. Uns laivos mais escuros e quase conseguia ouvir aquela voz enquanto terminava.
Quando terminei fiquei a olhar para ela enquanto ela olhava para mim e juro que vi os seus lábios a mexer e o som a formar aquele pedido: - Liberta-me. Não sei bem o que se passou a seguir mas acho que com o medo devo ter atirado o busto para o chão, porque quando dei por mim ele estava estatelado no chão de costas para mim e podia ver os cacos espalhados. Pensei que estava finalmente a ficar doida por estar sempre fechada em casa. Peguei nele para avaliar os estragos ou deitá-lo fora, já não sei bem, virei-o para mim e desmaiei.
Quando acordei foi só tomar consciência do que tinha acontecido e recompor-me para fazer o que tinha de ser feito.
Aquela foi a primeira vez em três anos que saí de casa e fui até ao jardim nas traseiras que pagava ao jardineiro para embelezar todos os meses mas que eu só via da janela. Fiz uma cova e meti lá dentro a cabeça mumificada que estava escondida no interior do busto. Juntei o que restava dele, cobri tudo com terra e achei por bem fazer uma oração.
Fiquei ali alguns minutos a ouvir o vento que parecia murmurar um agradecimento para longe...