terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Reunião de família

Bem, lá vamos nós outra vez. Não sei porque razão continuo a ir a estas reuniões de família. Ou melhor, sei... A curiosidade é uma coisa terrível!
Da última vez que nos vimos ele estava fantástico, como sempre. Ela estava um pouco mais...mais... Como posso dizer isto? Nada me parece muito adequado, estou a falar da realeza no final de contas... Digamos que estava mais próxima da Vênus de Willendorf do que da Vénus de Milo... Acho que percebem aonde quero chegar e são dois tipos de beleza feminina perfeitamente legítimos...
Bem, é o que acontece a uma pessoa quando se habitua demasiado à boa vida. Boa comida, criados para isto, criados para aquilo...
Sim, tenho inveja! E depois? Eu sempre fui nobre, nunca me habituei a este estilo de vida que levo agora. Ela adora esfregar-me isso na cara! Adora, pois! Ela, uma rapariga do campo, habituada aos trabalhos domésticos é agora rainha do mais rico reino... e eu reduzida a uma parente pobre! A prima que eles convidam para os jantares de família por pena, ou ainda pior, por gozo.
Que culpa tenho eu de ele me ter deixado por uma morenaça de olhos verdes? Eu por acaso lá tenho culpa de ser assim tão pálida? Parece que não conhecem a história? A culpa não é minha!
Ela teve foi sorte! Teve uma fada sempre do lado dela e toda a gente sabe que com magia as coisas são sempre mais fáceis! Eu tive de lutar contra uma bruxa! Eu escapei à morte! Ela o que fez? Vestiu uma roupinha mágica, calçou aqueles sapatos horríveis e apareceu num baile! Só isso. E felicidade para sempre! Caramba! Há pessoas com sorte!
Eu lá tenho culpa que ele tenha roubado tudo para levar para os trópicos e se instalar confortavelmente com aquela rameira exótica? Ainda tentei manter a situação mas não consegui. Até a estúpida mina de ouro acabou. Nem mais uma pepita de ouro os anões conseguiram retirar de lá...
Fui obrigada a declarar falência, mudei-me para uma zona mais modesta e o palácio foi vendido em hasta pública. Advinhem quem o comprou? ELA! Claro! Só para mo atirar a cara! Onde acham que vou jantar hoje? Claro que é lá! Acreditam mesmo que é coincidência? Pois...
Tive de voltar para a floresta onde é tudo muito bonito e pacífico mas tentem tomar uma banho gelado as sete da manhã que a beleza e a paz desaparecem imediatamente. Gelado, sim... Estranhamente o gás canalizado ainda não chegou a minha área de residência. Só a minha área de residência!
Bom, estou a chegar. Já os vejo a porta, o “casal maravilha”. Vá lá, porta-te bem agora ou ainda és decapitada... não era a primeira e afinal sou só prima por casamento...
Porque é que eu ainda venho a estas coisas?Para ver que ela está cada vez mais GORDA!

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Gémeos

No dia 10 de Setembro Carlos foi atirado para a cama de um hospital com uma “doença do sangue”. Os pais entraram em choque, o seu único filho tinha leucemia. Laurinda e Afonso já tinham ouvido falar disso, já tinham visto até pedidos de pais desesperados na televisão – naqueles telejornais que duram uma eternidade e esmiuçam ao máximo a desgraça humana. Já todos vimos um desses, mas sofrer um caso assim era demais para aquele casal feliz. Sim, porque os há, os casais felizes, digo.
A vida é claro mudou: idas ao hospital, cuidados com tudo, assistência diária ao filho. Laurinda deixou o emprego e tinha os nervos em papa, parecia andar continuamente sobre o efeito de um ou dois “Valium”. Afonso continuou a sua vida de contabilista tentando manter a família, embora, no fundo já estivesse corroído pelo medo. O medo. Oh, sim, aquele medo que lhes infestava o quarto à noite, aquele cheiro a medicamentos e hospital que circulava pelo quarto como um presságio de morte, uma corrente de ar nefasto e estagnado. De manhã voltava-se a rotina diária e o sorriso de Carlos sempre ajudava a esquecer que em tempos as coisas foram melhores. Não demorou muito até Laurinda e Afonso, aparecerem eles próprios num desses noticiários com um pedido de ajuda. Gerou-se uma onda de solidariedade mas nenhum dador compatível surgia da faina e a situação complicou-se, pois Carlos enfraquecia de dia para dia. Os médicos não pareciam poder ajudar e saltavam de especialista para especialista até encontrarem o Dr. Freitas Mendonça, senhor de alta reputação académica. Ao que Laurinda e Afonso conseguiram perceber, em vez de perder um filho iriam ganhar outro.
“Uma vez que não conseguimos encontrar um dador compatível com o vosso filho podemos criar um, uma espécie de clone. Retiramos uma amostra do DNA do vosso filho, retiramos algumas imperfeições, e daqui a nove meses podem usar o cordão umbilical para salvar o Carlos” - explicou o senhor doutor.
Laurinda e Afonso nem podiam conter o entusiasmo, além de se salvar o Carlos, um filho perfeito, iriam ter um outro filho igualzinho a ele. Nem todos os casais eram assim abençoados, mas vendo bem as coisas, eles tinham sido até ao dia 10 de Setembro um casal feliz. Aceitaram de imediato, assinaram os documentos necessários e fotocopiaram os papeis importantes.
Carlos lá foi resistindo, e nove meses depois, mais coisa menos coisa nasceu Bernardo. Três quilos e seiscentas e cinquenta e três gramas de pura saúde. Os procedimentos para salvar a vida de Carlos seguiram o planeado e Carlos recuperou. Laurinda procurou novo emprego e as coisas foram voltando ao equilíbrio e até felicidade.
Os efeitos do tempo não tardaram a fazer-se sentir. Uma mancha de húmidade no canto da sala, uma foto de Bernardo aqui, um desenho no frigorífico, uma medalha de atletismo no móvel da sala, um equipamento de futebol, um diploma e mais outro, e as coisas foram mudando.
Com o passar do tempo Carlos foi sentindo que Bernardo estava a roubar parte do seu lugar naquela família mas associou tudo a ciúmes de irmão mais velho, e, Bernardo salvou-lhe a vida. Sem ele não teria sequer lugar naquela família!
Infelizmente, o carrossel não pára e as coisas foram mudando novamente... Mais fotos, diplomas, medalhas, taças foram surgindo naquela casa e foi necessário arranjar espaço, que Alfredo e Laurinda arranjaram retirando algumas coisas de Carlos. Coisas insignificantes. Mas Carlos reparou e no fundo do seu coração foi crescendo uma sensação de roubo. A vida dele estava a ser roubada! Ele podia ter sido tudo aquilo, ele podia ter tudo aquilo! Ele podia ser o Bernardo. Melhor, o Bernardo era ele. Porque é que ele tinha de ficar com os seus genes e não as suas imperfeições? Não era justo! Ele é que era o verdadeiro. O original. Porque é que ele não podia ser um atleta? Porque é que ele se constipava frequentemente? E a raiva foi crescendo, crescendo. Ficando aprisionada naquele coração e foi ganhando forças, minando todo o seu espírito e raciocínio. Tecia conspirações que invariavelmente terminavam com a morte do irmão, chegando algumas vezes a tentar por os seus planos em prática, sendo apenas impedido pelos seus pais. “Aqueles traidores egoístas!”, pelo menos foi isso que ele lhes chamou quando os enfermeiros o enfiavam na ambulância para o levarem para a “casa de repouso”.Laurinda e Afonso durante uns tempos tiveram alguma dificuldade com a sua decisão mas depois foram atingidos por uma conclusão apaziguadora: ”Tinham pelo menos um filho perfeito”.

O violino

Aquele violino velho, roçado, com manchas de madeira gasta era tudo para ele. Cuidava dele com todo o carinho que lhe era humanamente possível para um objecto que todos os outros consideravam inanimado. Era um filho. Era mais que um filho, pois esses não recebiam tanta atenção nem passavam tanto tempo com o pai como aquele violino. A esposa, Adelaide, sentiu ciúmes daquele violino, desde sempre, desde sempre... mas esses ciúmes morreram assim que ela encontrou outro homem para amar em segredo. Segredo, não será bem assim, porque ele sabia... Seria mais por força das conveniências... mas ficaram juntos. Mentiam a eles próprios, como todas as pessoas fazem quando se sentem encurraladas por aquele animal feroz que é a vida social, dizendo para si próprios à noite, quando pensavam não aguentar mais, que era pelos filhos e a coisa foi-se mantendo. Ela com o seu Ramos e ele com o seu violino. Aquele violino era tudo para ele. Era a sua primeira recordação de infância: o seu sexto aniversário! Nunca tivera dia mais feliz. Nem a primeira vez que dormira com uma mulher – graças ao violino – se aproximara daquela sensação. Reconhecia todas as curvas daquele violino, cada imperfeição que ele dizia fazer dele o violino mais perfeito do mundo. Fora ele que lhe arranjara a bolsa de estudos, era ele que lhe arranjava o salário. A sua vida entrelaçava-se nas cordas do violino. Claro que já tivera muitas ocasiões para comprar novos violinos, chegara até a comprar alguns que pairavam pelos cantos da casa, escondidos no sotão ou destruídos pelos filhos que os utilizavam como escape do ódio pelo “violino” ou até mesmo pelo pai, quem sabe? Desligou-se da vida, da família, dos amigos poucos que tinha. Aproximou-se do violino. Compunha obras fantásticas para o violino mas já raramente o tocava com receio de o estragar. Aquele violino era tudo para ele. A sua fama foi crescendo. O amor foi crescendo sem ninguém se aperceber. Fora ele que o acompanhara na infância. Na adolescência complicada de rapaz franzino e espinhoso, na juventude rápida. Esteve sempre com ele.E foi com ele que o encontraram morto com um tiro nas costas quando fugia de dois assaltantes que lhe queriam a carteira e o violino. A carteira ainda lhe tiraram mas o violino... Tiveram de lhe partir a mão em vários sítios no gabinete do médico legista.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

A aposta

- Tens a certeza que consegues?
- Tenho! Já te disse que ia até ao fim! Para de me chatear com isso. Vou para casa. Encontramo-nos no sítio combinado.
- Aposto que não o fazes!
- Cala-te! Já te disse para fechares a boca. Até amanha.
E despedindo-se com um acenar de cabeça, daqueles que se dão quando não queremos muita conversa, Filipe dobrou a esquina e seguiu para casa tal como tinha dito. João continuou o seu caminho, seguindo a Rua Mártires da Pátria, e com calma foi vendo as montras e olhando as pessoas de esguelha. Sentiu o desprezo habitual o que o fez sentir bem e sorriu discretamente enquanto caminhava.
Filipe seguiu rápido para casa. Ainda queria arrumar (ou organizar como ele dizia) umas coisas naquela noite. Não queria deixar nada para o dia seguinte nem para ninguém. Ao entrar olhou de relance para a casa e planeou a sua estratégia. Começou por arrumar a secretária, passou para os livros na estante colocando-os por ordem alfabética. Saltou para o quarto e passou a roupa a ferro, colocou a roupa no roupeiro (ou guarda vestidos, como ele dizia – resquícios de uma infância passada entre irmãs) e depois foi para a cozinha. Lavar a louça era sempre uma tarefa que ele considerava especialmente dolorosa... Para encher a banca com a louça que ele sujava eram precisos alguns dias... e isso era uma lembrança constante da sua solidão. Quando acabou foi para quarto novamente e mudou os lençóis e foi-se despindo até chegar ao chuveiro. Tomou um longo banho que o fez sentir melhor e mais quente.
João entrou em casa, acendeu a luz, ligou a televisão (não suportava aquele o silêncio na casa vazia) e foi-se acomodando, começando por retirar a incomoda gravata e os sapatos clássicos que faziam parte do conjunto a que ele chamava os “ossos do ofício” e que faziam sobressair o seu ar aristocrático. Encheu um copo alto com licor de café, acendeu um cigarro e aproximou-se da janela para observar a cidade. Saboreou o momento, o cigarro e o licor.
Deixou a sala e deslizou depois para o quarto, despiu-se, vestiu-se e enfiou-se na cama. Amanhã era um dia especial, sorriu e adormeceu.
O outro, Filipe, escreveu a carta, tal como tinham combinado, e foi-se deitar. Demorou a adormecer, afinal amanhã era um dia especial, e ele teve sempre dificuldades em adormecer antes dos dias especiais.
A manhã surgiu limpa. Os despertadores tocaram nas duas casas aproximadamente à mesma hora. Filipe desligou o seu e levantou-se, fez as coisas que sempre fazia de manhã. João simplesmente levantou-se e deixou o despertador ligado com o rádio a tocar, e fez as coisas que sempre fazia de manhã. João pegou na carta, na arma e nas balas. Filipe também pegou na arma , na bala e no envelope. Saíram, trancaram as portas e foram para o lugar combinado.
Chegaram quase ao mesmo tempo ao prédio abandonado na 5 de Julho, cumprimentaram-se com um aceno de cabeça, entraram e subiram as escadas em direcção ao terraço. Subiam, Filipe à frente e João atrás, lentamente mas com uma velocidade constante. Tinham tempo.
- Tens a certeza que consegues?
- Tenho! Já te disse que ia até ao fim!
- Aposto que não o fazes!
João já não respondeu, endureceu o olhar e continuou a andar. Sempre até ao terraço. Filipe abriu a porta com algum esforço, estava perra (anos e anos de abandono tem efeitos destes nas portas e nos corações, simplesmente deixam de funcionar correctamente.), e a luz do sol iluminou a entrada. João sentiu-se melhor, era sempre melhor fazer aquilo num dia de sol, pensou ele, se bem que pensou quase de seguida, se haveria de facto algum dia melhor para fazer aquilo. Dirigiram-se para o meio do terraço e colocaram-se um em frente ao outro. Viram que estavam muito próximos e recuaram alguns passos. João apertou a carta que trazia no bolso, com alguma força enquanto Filipe apenas confirmou que o envelope lá estava.
- Tens a certeza que consegues?
- Tenho! Cala-te com isso!
- Aposto que não o fazes!
- Cala-te! Anda, vamos acabar com isto.
- Muito bem, vamos.
João retirou a arma do outro bolso e meteu lá dentro uma bala enquanto Filipe pegou apenas na arma.
Não a vais carregar?
Já está carregada.
Andaste por aí com uma arma carregada?
Andei! Qual é o problema? Estás com medo que me magoe.
Calaram-se os dois e enquanto um esboçava um sorriso trocista o outro respondia com um sorriso quase infantil.
- Vamos?
- Sim.
Pegaram na arma e enfiaram o cano da arma na boca, olharam um para o outro, e contaram até três com os dedos e com alguns sons que já não soavam a nada. O vento assobiava e levantava as pontas de metal solto. Aos três premiram o gatilho. João conseguiu ver ainda no rosto de Filipe um sorriso de desprezo e troça...mas já não foi a tempo de parar aquele movimento fatal e caiu morto no chão. O clique vazio da arma de Filipe pareceu mais alto que a pequena explosão da arma de Filipe. Olhou para o corpo mole de João, largou no chão a bala que tinha guardada no bolso e largou no ar o envelope vazio que foi arrastado para longe pelo vento. Virou costas e dirigiu-se para a porta, dizendo em voz baixa:
- Ganhaste! Sempre foste até ao fim.
Sorriu, abriu a porta e desceu com calma.
Afinal, pensou ele, hoje é um dia especial.