Aquele violino velho, roçado, com manchas de madeira gasta era tudo para ele. Cuidava dele com todo o carinho que lhe era humanamente possível para um objecto que todos os outros consideravam inanimado. Era um filho. Era mais que um filho, pois esses não recebiam tanta atenção nem passavam tanto tempo com o pai como aquele violino. A esposa, Adelaide, sentiu ciúmes daquele violino, desde sempre, desde sempre... mas esses ciúmes morreram assim que ela encontrou outro homem para amar em segredo. Segredo, não será bem assim, porque ele sabia... Seria mais por força das conveniências... mas ficaram juntos. Mentiam a eles próprios, como todas as pessoas fazem quando se sentem encurraladas por aquele animal feroz que é a vida social, dizendo para si próprios à noite, quando pensavam não aguentar mais, que era pelos filhos e a coisa foi-se mantendo. Ela com o seu Ramos e ele com o seu violino. Aquele violino era tudo para ele. Era a sua primeira recordação de infância: o seu sexto aniversário! Nunca tivera dia mais feliz. Nem a primeira vez que dormira com uma mulher – graças ao violino – se aproximara daquela sensação. Reconhecia todas as curvas daquele violino, cada imperfeição que ele dizia fazer dele o violino mais perfeito do mundo. Fora ele que lhe arranjara a bolsa de estudos, era ele que lhe arranjava o salário. A sua vida entrelaçava-se nas cordas do violino. Claro que já tivera muitas ocasiões para comprar novos violinos, chegara até a comprar alguns que pairavam pelos cantos da casa, escondidos no sotão ou destruídos pelos filhos que os utilizavam como escape do ódio pelo “violino” ou até mesmo pelo pai, quem sabe? Desligou-se da vida, da família, dos amigos poucos que tinha. Aproximou-se do violino. Compunha obras fantásticas para o violino mas já raramente o tocava com receio de o estragar. Aquele violino era tudo para ele. A sua fama foi crescendo. O amor foi crescendo sem ninguém se aperceber. Fora ele que o acompanhara na infância. Na adolescência complicada de rapaz franzino e espinhoso, na juventude rápida. Esteve sempre com ele.E foi com ele que o encontraram morto com um tiro nas costas quando fugia de dois assaltantes que lhe queriam a carteira e o violino. A carteira ainda lhe tiraram mas o violino... Tiveram de lhe partir a mão em vários sítios no gabinete do médico legista.
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