No dia 10 de Setembro Carlos foi atirado para a cama de um hospital com uma “doença do sangue”. Os pais entraram em choque, o seu único filho tinha leucemia. Laurinda e Afonso já tinham ouvido falar disso, já tinham visto até pedidos de pais desesperados na televisão – naqueles telejornais que duram uma eternidade e esmiuçam ao máximo a desgraça humana. Já todos vimos um desses, mas sofrer um caso assim era demais para aquele casal feliz. Sim, porque os há, os casais felizes, digo.
A vida é claro mudou: idas ao hospital, cuidados com tudo, assistência diária ao filho. Laurinda deixou o emprego e tinha os nervos em papa, parecia andar continuamente sobre o efeito de um ou dois “Valium”. Afonso continuou a sua vida de contabilista tentando manter a família, embora, no fundo já estivesse corroído pelo medo. O medo. Oh, sim, aquele medo que lhes infestava o quarto à noite, aquele cheiro a medicamentos e hospital que circulava pelo quarto como um presságio de morte, uma corrente de ar nefasto e estagnado. De manhã voltava-se a rotina diária e o sorriso de Carlos sempre ajudava a esquecer que em tempos as coisas foram melhores. Não demorou muito até Laurinda e Afonso, aparecerem eles próprios num desses noticiários com um pedido de ajuda. Gerou-se uma onda de solidariedade mas nenhum dador compatível surgia da faina e a situação complicou-se, pois Carlos enfraquecia de dia para dia. Os médicos não pareciam poder ajudar e saltavam de especialista para especialista até encontrarem o Dr. Freitas Mendonça, senhor de alta reputação académica. Ao que Laurinda e Afonso conseguiram perceber, em vez de perder um filho iriam ganhar outro.
“Uma vez que não conseguimos encontrar um dador compatível com o vosso filho podemos criar um, uma espécie de clone. Retiramos uma amostra do DNA do vosso filho, retiramos algumas imperfeições, e daqui a nove meses podem usar o cordão umbilical para salvar o Carlos” - explicou o senhor doutor.
Laurinda e Afonso nem podiam conter o entusiasmo, além de se salvar o Carlos, um filho perfeito, iriam ter um outro filho igualzinho a ele. Nem todos os casais eram assim abençoados, mas vendo bem as coisas, eles tinham sido até ao dia 10 de Setembro um casal feliz. Aceitaram de imediato, assinaram os documentos necessários e fotocopiaram os papeis importantes.
Carlos lá foi resistindo, e nove meses depois, mais coisa menos coisa nasceu Bernardo. Três quilos e seiscentas e cinquenta e três gramas de pura saúde. Os procedimentos para salvar a vida de Carlos seguiram o planeado e Carlos recuperou. Laurinda procurou novo emprego e as coisas foram voltando ao equilíbrio e até felicidade.
Os efeitos do tempo não tardaram a fazer-se sentir. Uma mancha de húmidade no canto da sala, uma foto de Bernardo aqui, um desenho no frigorífico, uma medalha de atletismo no móvel da sala, um equipamento de futebol, um diploma e mais outro, e as coisas foram mudando.
Com o passar do tempo Carlos foi sentindo que Bernardo estava a roubar parte do seu lugar naquela família mas associou tudo a ciúmes de irmão mais velho, e, Bernardo salvou-lhe a vida. Sem ele não teria sequer lugar naquela família!
Infelizmente, o carrossel não pára e as coisas foram mudando novamente... Mais fotos, diplomas, medalhas, taças foram surgindo naquela casa e foi necessário arranjar espaço, que Alfredo e Laurinda arranjaram retirando algumas coisas de Carlos. Coisas insignificantes. Mas Carlos reparou e no fundo do seu coração foi crescendo uma sensação de roubo. A vida dele estava a ser roubada! Ele podia ter sido tudo aquilo, ele podia ter tudo aquilo! Ele podia ser o Bernardo. Melhor, o Bernardo era ele. Porque é que ele tinha de ficar com os seus genes e não as suas imperfeições? Não era justo! Ele é que era o verdadeiro. O original. Porque é que ele não podia ser um atleta? Porque é que ele se constipava frequentemente? E a raiva foi crescendo, crescendo. Ficando aprisionada naquele coração e foi ganhando forças, minando todo o seu espírito e raciocínio. Tecia conspirações que invariavelmente terminavam com a morte do irmão, chegando algumas vezes a tentar por os seus planos em prática, sendo apenas impedido pelos seus pais. “Aqueles traidores egoístas!”, pelo menos foi isso que ele lhes chamou quando os enfermeiros o enfiavam na ambulância para o levarem para a “casa de repouso”.Laurinda e Afonso durante uns tempos tiveram alguma dificuldade com a sua decisão mas depois foram atingidos por uma conclusão apaziguadora: ”Tinham pelo menos um filho perfeito”.
A vida é claro mudou: idas ao hospital, cuidados com tudo, assistência diária ao filho. Laurinda deixou o emprego e tinha os nervos em papa, parecia andar continuamente sobre o efeito de um ou dois “Valium”. Afonso continuou a sua vida de contabilista tentando manter a família, embora, no fundo já estivesse corroído pelo medo. O medo. Oh, sim, aquele medo que lhes infestava o quarto à noite, aquele cheiro a medicamentos e hospital que circulava pelo quarto como um presságio de morte, uma corrente de ar nefasto e estagnado. De manhã voltava-se a rotina diária e o sorriso de Carlos sempre ajudava a esquecer que em tempos as coisas foram melhores. Não demorou muito até Laurinda e Afonso, aparecerem eles próprios num desses noticiários com um pedido de ajuda. Gerou-se uma onda de solidariedade mas nenhum dador compatível surgia da faina e a situação complicou-se, pois Carlos enfraquecia de dia para dia. Os médicos não pareciam poder ajudar e saltavam de especialista para especialista até encontrarem o Dr. Freitas Mendonça, senhor de alta reputação académica. Ao que Laurinda e Afonso conseguiram perceber, em vez de perder um filho iriam ganhar outro.
“Uma vez que não conseguimos encontrar um dador compatível com o vosso filho podemos criar um, uma espécie de clone. Retiramos uma amostra do DNA do vosso filho, retiramos algumas imperfeições, e daqui a nove meses podem usar o cordão umbilical para salvar o Carlos” - explicou o senhor doutor.
Laurinda e Afonso nem podiam conter o entusiasmo, além de se salvar o Carlos, um filho perfeito, iriam ter um outro filho igualzinho a ele. Nem todos os casais eram assim abençoados, mas vendo bem as coisas, eles tinham sido até ao dia 10 de Setembro um casal feliz. Aceitaram de imediato, assinaram os documentos necessários e fotocopiaram os papeis importantes.
Carlos lá foi resistindo, e nove meses depois, mais coisa menos coisa nasceu Bernardo. Três quilos e seiscentas e cinquenta e três gramas de pura saúde. Os procedimentos para salvar a vida de Carlos seguiram o planeado e Carlos recuperou. Laurinda procurou novo emprego e as coisas foram voltando ao equilíbrio e até felicidade.
Os efeitos do tempo não tardaram a fazer-se sentir. Uma mancha de húmidade no canto da sala, uma foto de Bernardo aqui, um desenho no frigorífico, uma medalha de atletismo no móvel da sala, um equipamento de futebol, um diploma e mais outro, e as coisas foram mudando.
Com o passar do tempo Carlos foi sentindo que Bernardo estava a roubar parte do seu lugar naquela família mas associou tudo a ciúmes de irmão mais velho, e, Bernardo salvou-lhe a vida. Sem ele não teria sequer lugar naquela família!
Infelizmente, o carrossel não pára e as coisas foram mudando novamente... Mais fotos, diplomas, medalhas, taças foram surgindo naquela casa e foi necessário arranjar espaço, que Alfredo e Laurinda arranjaram retirando algumas coisas de Carlos. Coisas insignificantes. Mas Carlos reparou e no fundo do seu coração foi crescendo uma sensação de roubo. A vida dele estava a ser roubada! Ele podia ter sido tudo aquilo, ele podia ter tudo aquilo! Ele podia ser o Bernardo. Melhor, o Bernardo era ele. Porque é que ele tinha de ficar com os seus genes e não as suas imperfeições? Não era justo! Ele é que era o verdadeiro. O original. Porque é que ele não podia ser um atleta? Porque é que ele se constipava frequentemente? E a raiva foi crescendo, crescendo. Ficando aprisionada naquele coração e foi ganhando forças, minando todo o seu espírito e raciocínio. Tecia conspirações que invariavelmente terminavam com a morte do irmão, chegando algumas vezes a tentar por os seus planos em prática, sendo apenas impedido pelos seus pais. “Aqueles traidores egoístas!”, pelo menos foi isso que ele lhes chamou quando os enfermeiros o enfiavam na ambulância para o levarem para a “casa de repouso”.Laurinda e Afonso durante uns tempos tiveram alguma dificuldade com a sua decisão mas depois foram atingidos por uma conclusão apaziguadora: ”Tinham pelo menos um filho perfeito”.
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