quinta-feira, 24 de maio de 2007

Passion fruit

Ultimamente ando tão cansada. Tão cansada. Tudo me cansa: descer da cama, descer as escadas, abrir a água, ligar o fogão, abrir os olhos, fechar os olhos. Tudo. Ando assim há uns meses mas a vida continua. Uma pessoa esforça-se. O pior são mesmo os dentes que começaram a ceder. É a idade. Só me sinto bem de tarde, no jardim, quando me sento à sombra da minha árvore do maracujá. Tem sido a minha companhia. O meu apoio. E tem dado os seus frutos. Uns frutos deliciosos. Toda a gente o diz e me pergunta qual o meu segredo. O meu segredo? Amor e carinho.
Veio connosco, comigo e com o meu marido para esta casa. É a nossa fruta favorita. Plantamo-la com juras de paixão eterna na primeira lua cheia de Abril. Nos primeiros anos os frutos eram pequenos e mirrados e podia dizer-se que a árvore era anã. Podia até ser um símbolo do que se tinha tornado o nosso casamento. O Fredo trabalhava até tarde no escritório, dizia ele, mas chegava a cheirar a vinho e a pêgas. Vivia num choro constante. A árvore parecia compreender.
Um dia não aguentei mais e disse-lhe que me ia embora. Ele agarrou-me e bateu-me. Bateu-me. Saí a correr para o jardim para fugir. Ele correu atrás de mim, tropeçou numa das raízes salientes da árvore e caiu em cima de um ancinho da horta. Morreu ali. Sem gritos nem dor. Não chorei. Sem gritos nem dor. Peguei numa pá e escavei cuidadosamente por baixo da árvore do maracujá, tentando não estragar as raízes e enterrei-o. No dia seguinte de manhã fui à polícia apresentar queixa de desaparecimento do meu Fredo. Aí sim. Dor e gritos. Para todos os efeitos saiu depois do jantar e não voltou. Nem vai voltar é claro. Ao que parece o meu Fredo já era conhecido da polícia e ninguém se preocupou muito com ele. Nem eu com isso.
A árvore cresceu. Cuido dela como cuidava dele. Dou-lhe todo o meu carinho e ela corresponde. Cresce forte e dá-me os seus frutos deliciosos que é mais do que aquele ingrato me deu. Nos dias bons penso que é ele que... disparates.
Ela está aqui para mim. Adoro vir para aqui de tarde.Ando tão cansada. Tão cansada. Vou dormir um bocadinho.

Desvitalização

Quando é que descobri isto?
Não sei bem. Talvez há uns dois, três anos. Na altura tinha começado a trabalhar por conta própria e também me começaram a aparecer as primeiras rugas de expressão. Odeio rugas. Comecei a vê-las, a estudá-las. Optei pelos cremes. Nada. Lá estavam elas todos os dias, à noite, no espelho, quando o efeito do creme passava. Quer dizer, sempre não. Um dia apareceram bastante reduzidas e algumas quase nem se notavam. Fiquei especada em frente ao espelho a tentar perceber o que tinha feito de diferente, que creme novo tinha posto. E nada me veio a cabeça. Um dia como os outros. pensei: ”finalmente o dinheiro dos cremes vai render”. Uma semana depois estava especada outra vez em frente ao espelho. As rugas tinham desaparecido todas. Todas. Dei voltas à cabeça e finalmente vi o denominador comum entre estes meus dois dias – fiz uma desvitalização! Já não fazia uma há muito tempo. Na clínica anterior só me deixavam fazer os trabalhos menores, as limpezas e os tratamentos de cáries...
É claro que pensei: “Não sejas parva! Estás a perder o juízo e eu a ver...”. E as rugas voltaram algum tempo depois.
Surgiu a oportunidade de nova desvitalização, e, aquela ideia não me saía da cabeça pelo que decidi arranjar provas. Fotografei todos os milímetros da minha cara antes e depois da desvitalização.
Era impossível não ver, parecia uma miúda de 23 anos! Linda e jovem.
Mas voltaram. Novamente. Não suportei ver-me assim feia e velha. Retorcida e marcada. A ansiedade dava cabo de mim e já pensava desvitalizar um dente a um qualquer paciente mesmo que o dente estivesse impecável. Eu sabia que era errado mas não o podia evitar. Foi o que aconteceu mas não o podia fazer outra vez.
Já não suportava o espelho. Felizmente nesta altura apareceu no meu consultório a D. Rosália. Uma adorável velhinha de 75 anos e com uns dentes num estado lastimoso. Foram tratamentos atrás de tratamentos. E desvitalizações. A senhora adorava-me! Via a minha necessidade de desvitalizações como uma sentida preocupação com o seu bem-estar...
- Vamos desvitalizar este dente D. Rosália?
- Não filha. Deixa estar, já não vale a pena. Mais vale arrancar.
- D. Rosália, tem um sorriso tão bonito! Quer ficar agora sem dentes? Quer mesmo tirar?
- Um sorriso bonito? Pronto, está bem, vamos desvitalizar.
Adorava-me! Até me chegou a trazer uns maracujás caseiros deliciosos. Deliciosos. De chorar por mais mesmo.
Lá fui andando intercalando a D. Rosália com desvitalizações ocasionais. Cada vez mais jovem, cada vez mais bela. A situação manteve-se até ao dia em que a minha assistente me entra a correr pelo consultório e diz muito emocionada:
- Sabe quem morreu?
- Quem?
- A D. Rosália!
- Não? Não pode ser!
- Foi. Também me custa a aceitar. Uma senhora tão simpática. Morreu esta noite e encontraram-na sentada numa cadeira do jardim.
- A sério?
- Sim. Ia lá brincar com isto doutora? Coitadinha. Uma senhora tão amorosa, mas ela realmente envelheceu muito nos últimos tempos. Cada vez que a via estava mais vincada.
Fiquei em silêncio e não consegui dizer uma palavra. Como é que eu ia fazer? As desvitalizações ocasionais não eram suficientes e muito irregulares. As minhas rugas já se começavam a notar e eu estava a contar com a desvitalização da semana seguinte. Foram uns dias horríveis. Horríveis, mesmo.
A sorte deve andar do meu lado e deve ser linda também. A D. Almerinda veio ao meu consultório. Uma outra velhinha adorável. Veio também a D. Rosa, a D. Elisa e a D. Paula. Estas arrastaram outras. E os maridos. E os filhos.
A D. Rosália gostava tanto de mim que falou do meu trabalho a todas as suas amigas...

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Coisas que acontecem


Segundo me disseram isto são coisas que acontecem, mas...eu não estou muito convencido!
Estava eu a lavar descansadamente a louça do pequeno almoço quando espreito para a rua pelo canto do olho, e, não é que, vejo um filho da mãe (para não dizer outra coisa) a riscar-me o carro novinho ao passar um buraco! Até me doeu a alma! Nem sequer pensei duas vezes e saí logo a correr pelas escadas abaixo. Quase tropeçava nuns miúdos que trocavam tazos no fundo das escadas mas quando lá cheguei a besta já se tinha pisgado (nota para o próprio: IR MAIS VEZES AO GINÁSIO!) Fiquei no passeio a tentar lembrar-me da matrícula e a olhar para o meu carrinho (e a dizer mal da minha vida) quando o filho da Noémia do 3.o direito falhou um chuto e acertou com a bola num vaso da senhora Henriqueta do 2.o andar. As tulipas amarelas caíram-me mesmo em cheio na cabeça. O vaso também foi mesmo em cheio, é claro.
Caí estatelado no chão! Segundo me disseram não havia meio de acordar, por isso, acharam por bem chamar uma ambulância. Para minha sorte esta veio bastante rápido, mas, o grande bónus foi o estagiário com sede de conhecimento e de prática. Muita sede. Como não conseguiu sentir a minha pulsação (tenho as tensões extremamente baixas verdade seja dita – o meu médico diz que se eu estivesse a dormir me declarava morto, o que é bem provável... ele não é muito bom médico.), achou que estava em paragem cardio-respiratória. O rapaz sequioso como estava decidiu fazer a massagem com muito empenho. Um pouco mais até do que o que era necessário porque me partiu uma costela! Como partir uma costela dói qualquer coisita eu acordei. O rapaz ficou todo inchado de contentamento. O seu primeiro salvamento...até ter percebido que as dores toráxicas eram demasiadas para quem levou com um vaso na cabeça... Ligaram as sirenes e lá fui eu a todo gás para o hospital mais próximo.
Ao passar o cruzamento do LIDL bateram num Renault Clio. Caí da maca abaixo e bati com a cabeça outra vez. Nova perda de sentidos. Nova ambulância que veio socorrer a ambulância e lá vou eu para o hospital mais próximo...outra vez.
O médico que me atendeu perguntou-me o que se tinha pensado, e, eu, contei-lhe exactamente o mesmo que contei a vocês. Ele só me disse: ”são coisas que acontecem”. Não sei porque, mas, isso na altura, não me animou muito – tinha o carro riscado, a cabeça cheia de terra, uma costela partida e umas dores de cabeça que faziam lembrar as ressacas dos tempos de faculdade!
Lá fui para casa de autocarro e quando cheguei meti a mão ao bolso para tirar a chave... e não a encontrei lá. Não a tinha trazido quando desci as escadas a correr. Bati com a cabeça na porta (estúpido acto reflexo) e vi no fundo da porta um fiozinho de água a correr. A água da cozinha! Bati novamente com a cabeça na porta (desta vez com vontade!).

sábado, 12 de maio de 2007

Corvos negros

É triste ter uma semi-existência camuflada de vida.
Agora chega quase a ser natural, já não fazemos aquele esforço para fingir que vivemos e sentimos através de um outro.
É tão bom quando podemos ser nós próprios. Quando as luzes se apagam, deixamos o nosso corpo e gozamos em pleno esta nossa existência eterna.
Se estiverem atentos podem ouvir o bater suave das asas como as dos pássaros aprisionados.
No fundo, é isso que nós somos. Pássaros enjaulados. E batemos as asas e tentamos voar, pairamos no ar.

Presos naquela jaula orgânica. Invólucro desconfortável, privativo dos sentidos e do espaço, que nos prende ao chão com algemas invisíveis.
Escravos. É isso que nos somos. Escravos condenados a vigiar seres insignificantes e sem glória. Velar por eles.
Vagueamos por entre a multidão. Somos aquele que vos fixa sem razão aparente, somos aquele que vos olha de relance. Somos aquele que vos vigia, somos aquele que vos impede. Somos aquele que vos ajuda, somos aquele que vos perturba. Somos aquele que vos inspira.
Amas sofisticadas. Anjos da guarda. Anjos de companhia. Somos corvos negros ansiando a liberdade.

terça-feira, 1 de maio de 2007

O Sr. Nate e o Sr. Benje*

O Sr. Nate e o Sr. Benje eram vizinhos, quer dizer, não eram, ou melhor eram mas sem o serem! Moravam na mesma cidade mas em lados opostos. O Sr. Nate morava na parte fina da cidade, com os seus casarões de séculos passados que apenas se abriam para sangue-azulados. Ou vermelho vivo, vivo como o dinheiro.
O Sr. Benje vivia no extremo oposto como ainda se devem lembrar, numa viela escura a transpirar de trabalho e orgulho. Os caminhos destes dois homens nunca se tinham cruzado até ao dia 25 de Março de 1930, altura em que o destino moveu as suas teias. O Sr. Nate tinha negócios a tratar, e, o Sr. Benje contas para pagar, pelo que embarcaram no mesmo barco rumo a locais exóticos e desconhecidos.
A viagem começou calma, com dias de sol e pouco vento, e, os passageiros aproveitavam para gozar um pouco de sol, sempre resguardados, é claro. Sol em excesso não é bom para ninguém e todos sabiam disso.
O barco era como uma pequena cidade por isso o Sr. Nate e o Sr. Benje ficaram novamente em lados opostos. Um na parte fina e outro na parte... bem, não tão fina! Aqui também não havia misturas, embora todos se cruzassem e apanhassem o mesmo sol de final da tarde, a noitinha todos regressavam para os seus respectivos aposentos. Na verdade, quase todos. Alguns pares de amores escondidos batiam asas mas isso é outra história. Voltemos ao Sr. Nate e ao Sr. Benje!
Ao terceiro dia de viagem o tempo foi modificando e as nuvens foram chegando, chegando devagarinho até se instalarem definitivamente e taparem o Sol por completo. Depois das nuvens chegou a tempestade e essa não foi chegando devagarinho...simplesmente chegou!
Chegou e sacudiu o barco com força, fez subir as ondas e virar o barco. O Sr. Nate caiu ao mar na sua cadeira enquanto lia um dos seus romances, e foi-se afastando assim a flutuar, sentado, debaixo de chuva e trovoada, sem ninguém dar conta. O Sr. Benje ia a correr para o seu quarto (porque nunca tinha gostado muito de trovoada que o fazia ficar com pele de galinha e arrepiava os caracóis da parte de trás da cabeça) e numa sacudidela caiu também ao mar agarrado a um guarda chuva, e, lá se foi afastando. O Sr. Benje abriu o guarda chuva, virou-o ao contrário e subiu a bordo. Passaram dois dias e três horas a navegar em águas desconhecidas até irem desaguar num pequeno monte de areia com algumas palmeiras e um riacho que a atravessava completamente a meio.
Chegaram os dois a ilha quase ao mesmo tempo: um sentado na sua cadeira de descanso a ler um romance e o outro a dormitar sentado no guarda chuva. O Sr. Nate desceu de sua cadeira, olhou em volta, atravessou o riacho e sentou-se numa rocha verde-acinzentada. O Sr. Benje foi a correr atrás dele mas quando tentou atravessar o riacho o Sr. Nate perguntou:
- O que pensa que vai fazer?
- Vou ter consigo, disse o Sr. Benje.
- Ai não, não vai. Este é o meu lado da ilha, respondeu o Sr. Nate enquanto o olhava de alto a baixo. Além do mais eu não me dou com seres da sua espécie, acrescentou sem o olhar nos olhos.
O Sr. Benje ficou tão indignado! Nunca tinha sido tão humilhado na vida. Ele que sempre fora um trabalhador honesto! Deu meia volta e murmurou entredentes:
- Não perdes pela demora!
Cada um fez um abrigo no seu lado da ilha e uma pequena fogueira. O Sr. Benje fez tudo mais rápido mas o Sr. Nate lá se desenrascou. Assim ficaram três dias a andar de um lado para o outro. O Sr. Nate acabou o romance e encontrou um baralho de cartas no seu casaco que resistiu a tempestade e entretinha-se a jogar solitário, o Sr. Benje ia ampliando a casa. Ao fim de uma semana já não fazia obras e o Sr. Nate já não suportava a ideia de jogar cartas sozinho. Ao nono dia foi até ao riacho e gritou.
- Quer jogar uma partida de cartas?
- Quem? Eu? Está falar comigo? Perguntou o Sr. Benje.
- Sim! Vê aqui mais alguém? Quer ou não quer jogar cartas? Perguntou irritado o Sr. Nate.
- Não obrigado. Eu não jogo cartas com pessoas da sua espécie, respondeu o Sr. Benje com um sorriso.
O Sr. Nate olhou-o com um ar de completa admiração e voltou para a sua pedra de jogo. Não houve mais troca de palavras mas não se preocupem meninos, eles não ficaram sozinhos. Um ficou com o ódio, o outro com a vingança.
*conto infantil