Era uma pessoa normal, tanto quanto se pode ser. Um pouco isolado talvez, e conheciam-se-lhe poucos romances. Falava pouco com os vizinhos, só o estritamente necessário. Tinha um carro pequeno, branco e barato. Poderia até dizer-se que era uma pessoa triste não fossem aqueles dias em que aparecia com um sorriso de alegria secreta e maliciosa.
Começou a trabalhar lá no museu mal saiu da faculdade e foi subindo de posto. Era um trabalhador exemplar. Não havia trabalho que ficasse por fazer, nem que para isso tivesse que trabalhar a noite toda. Falava tanto com os colegas como falava com os vizinhos. Almoçava sozinho os restos do jantar que trazia de casa e que aquecia suavemente no microondas da sala comum. Fazia isto o mais rápido que podia e depois ia passear pelo museu. Gastava os seus restantes 56 minutos de pausa para almoço a passear pelo local de trabalho. Alguns consideravam isto estranho mas ele nem sequer prestava atenção aos comentários. Era vê-lo circular calmamente pelo museu e parar sem aviso prévio para ficar a admirar uma peça nova. Nos dias seguintes apenas aquela peça interessa...Até parecer ter retirado toda a informação, todas as mudanças de cor e luz, o pormenor das pinceladas curtas e precisas. Depois volta à rotina dos passeios até encontrar uma nova vítima para analisar com os seus olhos luminosos. È assim que o encontramos hoje: a olhar para uma peça nova como se não existisse mais nada para ver. Um estado hipnótico quebrado apenas pelo lembrete do telemóvel indicando que está na hora de ir trabalhar.
O trabalho na secção hoje está atrasado e mais uma vez voluntariou-se para umas horas extraordinárias. Diz ele que não tem família em casa e o dinheiro faz-lhe jeito. Na verdade não precisa mas quer vir para o museu.
Vai a casa tomar um banho, trocar para uma roupa mais confortável e jantar qualquer coisa rápida. Pega na caixa dos comprimidos e sai. Tudo muito rápido com ansiedade crescente para não chegar tarde. Entre no café da frente e compra cinco cafés para levar, acelera o passo ao atravessar a rua e chega ao museu no momento exacto: a troca de turnos. Oferece dois cafés aos seguranças da noite que sorriem e agradecem a amabilidade inocente, uma coisa rara.
Ruma para a sua sala bebendo calmamente um dos cafés restantes. Adianta algum serviço enquanto controla o tempo.
Vinte minutos devem ser suficientes.
Sai da sala silenciosamente e esgueirando-se para não ser visto pelas câmaras dirige-se ao gabinete de segurança. Dormem os dois nas cadeiras. Aproxima-se, desliga os alarmes e põe o sistema de vídeo em loop. As coisas que se conseguem aprender na Internet são realmente fantásticas. Ao ir para a secção 3 passa na sua sala e apanha o porta-projectos que tinha trazido dois dias antes e a sua pequena mala de ferramentas.
Pára diante do quadro, retira-o da parede e vira-o ao contrario. Retira a tela com muito cuidado e substitui-a pela cópia que fez em casa, pormenor a pormenor. Coloca tudo no sítio e confirma os pormenores. Guarda o porta-projectos e a mala na sua sala, pega nos dois cafés extra e volta ao gabinete de segurança. Substitui os cafés dos seguranças, deixa-os com a mesma quantidade de líquido e no mesmo local, activa os alarmes e retira as câmaras do loop. Volta sorrateiramente para a sua sala, fecha a porta atrás de si e continua o seu trabalho como se nada se tivesse passado.
Acabou o trabalho. Vai para casa e a ansiedade agora parece surgir do nada, mal consegue rodar a chave e entra em casa com uma azelhice descabida. Coloca a tela na parede, acende a lareira e senta-se no sofá. Admira-a. Absorve todo o seu conteúdo. Agora é sua. Fica assim durante horas até já não haver mais nada para olhar porque já faz parte dele.
Levanta-se, retira-a da parede e atira-a para a lareira. Para junto das cinzas das outras, e, nem sequer olha para trás quando se desfaz em labaredas soltando aquele odor metalo-químico da tinta.
Sobe as escadas e vai tomar um banho. Já são horas de voltar ao trabalho.
Começou a trabalhar lá no museu mal saiu da faculdade e foi subindo de posto. Era um trabalhador exemplar. Não havia trabalho que ficasse por fazer, nem que para isso tivesse que trabalhar a noite toda. Falava tanto com os colegas como falava com os vizinhos. Almoçava sozinho os restos do jantar que trazia de casa e que aquecia suavemente no microondas da sala comum. Fazia isto o mais rápido que podia e depois ia passear pelo museu. Gastava os seus restantes 56 minutos de pausa para almoço a passear pelo local de trabalho. Alguns consideravam isto estranho mas ele nem sequer prestava atenção aos comentários. Era vê-lo circular calmamente pelo museu e parar sem aviso prévio para ficar a admirar uma peça nova. Nos dias seguintes apenas aquela peça interessa...Até parecer ter retirado toda a informação, todas as mudanças de cor e luz, o pormenor das pinceladas curtas e precisas. Depois volta à rotina dos passeios até encontrar uma nova vítima para analisar com os seus olhos luminosos. È assim que o encontramos hoje: a olhar para uma peça nova como se não existisse mais nada para ver. Um estado hipnótico quebrado apenas pelo lembrete do telemóvel indicando que está na hora de ir trabalhar.
O trabalho na secção hoje está atrasado e mais uma vez voluntariou-se para umas horas extraordinárias. Diz ele que não tem família em casa e o dinheiro faz-lhe jeito. Na verdade não precisa mas quer vir para o museu.
Vai a casa tomar um banho, trocar para uma roupa mais confortável e jantar qualquer coisa rápida. Pega na caixa dos comprimidos e sai. Tudo muito rápido com ansiedade crescente para não chegar tarde. Entre no café da frente e compra cinco cafés para levar, acelera o passo ao atravessar a rua e chega ao museu no momento exacto: a troca de turnos. Oferece dois cafés aos seguranças da noite que sorriem e agradecem a amabilidade inocente, uma coisa rara.
Ruma para a sua sala bebendo calmamente um dos cafés restantes. Adianta algum serviço enquanto controla o tempo.
Vinte minutos devem ser suficientes.
Sai da sala silenciosamente e esgueirando-se para não ser visto pelas câmaras dirige-se ao gabinete de segurança. Dormem os dois nas cadeiras. Aproxima-se, desliga os alarmes e põe o sistema de vídeo em loop. As coisas que se conseguem aprender na Internet são realmente fantásticas. Ao ir para a secção 3 passa na sua sala e apanha o porta-projectos que tinha trazido dois dias antes e a sua pequena mala de ferramentas.
Pára diante do quadro, retira-o da parede e vira-o ao contrario. Retira a tela com muito cuidado e substitui-a pela cópia que fez em casa, pormenor a pormenor. Coloca tudo no sítio e confirma os pormenores. Guarda o porta-projectos e a mala na sua sala, pega nos dois cafés extra e volta ao gabinete de segurança. Substitui os cafés dos seguranças, deixa-os com a mesma quantidade de líquido e no mesmo local, activa os alarmes e retira as câmaras do loop. Volta sorrateiramente para a sua sala, fecha a porta atrás de si e continua o seu trabalho como se nada se tivesse passado.
Acabou o trabalho. Vai para casa e a ansiedade agora parece surgir do nada, mal consegue rodar a chave e entra em casa com uma azelhice descabida. Coloca a tela na parede, acende a lareira e senta-se no sofá. Admira-a. Absorve todo o seu conteúdo. Agora é sua. Fica assim durante horas até já não haver mais nada para olhar porque já faz parte dele.
Levanta-se, retira-a da parede e atira-a para a lareira. Para junto das cinzas das outras, e, nem sequer olha para trás quando se desfaz em labaredas soltando aquele odor metalo-químico da tinta.
Sobe as escadas e vai tomar um banho. Já são horas de voltar ao trabalho.
3 comentários:
O vapor relaxante e enebriante do banho de emersão antevia-me uma noite calma, sossegada, relaxada, em nada diferente das outras…
A porta do quarto estava entreaberta, deixei-a propositadamente assim para que aquele odor da tinta fétida invadisse todo o meu quarto e povoasse as quatro paredes de biografias, narrativas, cenas passadas, contos, histórias de vidas daquelas obras que agora me pertenciam!!
Entrei e fechei cuidadosamente a porta, que irrompeu num choro atrás de mim vítima do tempo seco que nos invadia neste verão.
Preparava-me para ter uma conversa com a minha companheira de todas as noites, a almofada amarelecida de pensamentos meus, quando ao olhar pela janela do quarto algo captou e aprisionou o meu pensamento… Volvi, tentei adormecer. Tive a sensação de já terem passado quatro horas, mas o relógio mostrou-me apenas terem passados quatro minutos! Estranhamente…a noite avizinhava-se longa, histérica tenebrosa, medonha! Mas porquê? Não entendo! Afinal esta é só mais uma noite igual a tantas outras que já pereceram! Este foi um momento pensado com tanto carinho! Porque me atraiçoava agora assim a minha consciência…ah, aquela obra! Aquela obra, a mais pura visão da beleza! Eu mesmo a coloquei no lugar que lhe estava destinado, eu mesmo a agarrei, a segurei. Eu…fui eu quem sentiu todo o poderio daquela obra-prima do genial mestre italiano.
Retrato de Cecília de Gallerani (a senhora com arminho)
Cerca de 1940
Óleo sobre madeira
54,8 x 40,3 cm
Desde o primeiro momento que a vi me apaixonei por ela, era a Deusa das obras-primas, a Vénus do meu altar. Tinha a doçura, o ar angelical, a surpresa, o mistério…atraia-me de tal maneira!! Agora tenho-a comigo, é minha, sempre será! Povoará as paredes do meu quarto, sinto o seu odor fresco e corrupto invadir as minhas narinas, a molestar todo o meu corpo…
Mais uma vez olhei pela janela do meu quarto, um súbito e repentino sentimento atraiu-me…como um imã contra o qual não se tem forças para lutar. De um pulo saltei para a janela, olhei para o meu carro estacionado em baixo. Estranhamento reluziu como nunca o vi, o branco do carro era sobrenatural! O meu magnetismo estava explicado, ah a lua, ah o luar…era ela, era ela possuidora, a senhora das minhas perturbações!
Contemplei-a vezes e vezes sem conta antes de adormecer…afinal debaixo da lua vive gente!
Dormi os 13 minutos que me restavam como o sono dos justos!
Uups...os génios também têm falhas e esta não poderia passar! Era uma ofensa: cerca de 1490!
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