sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

161.5

Decidiu parar naquela frase, não se sabia bem porquê. Era a quinta frase da página 161 do livro que andava a tentar terminar faziam já alguns dias. “And so it is not to be wondered at if he grew up a little spoilt, a little fond of his own way and a little inclined to think well of himself.”. Era uma conclusão fundamental para a construção da personagem e parecia até que se aplicava a ele próprio e não seria até de estranhar que ao encontrar essa frase se tivesse decidido a parar para reflectir sobre a personagem que era ele próprio e a sua construção. O livro não era nada de extraordinário e o facto de estar a ler fora do âmbito da sua língua materna conjugado com um inglês “austeniano” não ajudavam em nada a leitura demorada que já estranhavam os vizinhos do metro.
Aquela frase ali solta e estática parecia até um desafio lançado unicamente para ele pela autora desconhecida. Seria um desafio, desabafo ou acusação? Ficou na dúvida até os seus sentidos se sintonizarem na rapariga que agora entrava e se tentava agarrar com uma das mãos enquanto com a outra tentava não deixar cair o waffle com chocolate que libertava um vapor de chocolate negro e quente em toda a carruagem provocando um efeito Pavlov generalizado. Uma rapariga de cabelos negro e encaracolados que percorreu a carruagem, se sentou ao seu lado e abriu o Manual de Odontopediatria na página 161. Isso surpreendeu-o mas não tanto como o facto de a quinta frase que aparecia sublinhada a grafite suave, talvez de um lápis número dois, ter sido sussurrada: ”Os pais e a criança deverão ser orientados e tranquilizados.”.
Sentiu-se desconfortável e até observado embora não soubesse por quem mas conseguia sentir o aumento gradual do número de olhos perscrutando na sua direcção certamente sentindo o seu desconforto. A temperatura pareceu aumentar e o ar ficou mais pesado parecendo arrastar consigo pequenas gotas de suor para o fundo da nuca que deslizavam pelo pescoço. Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Era melhor sair antes que a situação fugisse do seu controlo. O controlo não estava habituado a fugir-lhe nem ele estava habituado a que ele lhe fugisse. Saiu do metro sem saber bem onde estava e subiu a rua, seguiu em frente sem olhar para trás afastando-se do barulho, das montras, das pessoas e daquele cheiro enjoativo e quente de chocolate que teimava em não lhe sair da roupa. Deu por si no meio do cemitério, em frente a quinta campa da secção 161. Era ali que ele descansava. Viu as tulipas frescas e as velas acesas e soube que ela tinha estado lá. Ela ia visita-lo frequentemente, ele não. Sentia que a culpa tinha sido dele, se calhar excesso de zelo ou talvez escassez de orientação como dizia o livro.
Não sabia o que tinha corrido mal mas sabia que tinha culpa. E saudades.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Chá das cinco

- Então? Fui a última a chegar?
- Não.
- Quem falta?
- Advinha...
- Oh... Também parece que faz de propósito para chegar tarde.
- Não sejas mázinha Fome... ainda é cedo. O chá ainda não está pronto. E tu sabes que ela demora mas vem sempre, podemos sempre contar com ela.
- Pronto, está bem, já não está aqui quem falou. Precisas de ajuda?
- Não. Vai ter com as outras à sala que eu vou acabar as coisas na cozinha.
- Queres que ponha a mesa?
- Não é preciso, a Maldade já preparou tudo. Ela tem jeito para a “mise en place”.
- Sim, ela tem olho para os pormenores.

- Olá meninas.
- Olá Fome.
- Olá. Podes-te sentar aqui. A Ira disse que esta cadeira era mais resistente e já não deve acontecer o mesmo de semana passada...
- Não comeces...
- Não faz mal, eu sei que estou a engordar, não consigo evitar. Só me apetece comer.
- Tens de fazer dieta.
- Para quê?
- Para ficares mais bonita.
- Com esta idade? Pois sim...
- Estamos preocupadas contigo, só isso.
- Tens feito as análises?
- Tenho. É o costume. Colesterol e triglicerídeos.
- Qualquer dia dá-te uma coisinha má.
- É preferível morrer com doenças...é um bocado triste morrer saudável.
- Não sejas parva...mas se isso acontecer posso ficar com o teu serviço de chá? E os talheres de prata?
- Podes. Eu escrevo no testamento que são para a minha amiga Cobiça, mas olha que vais ter de esperar. Não se livram de mim tão facilmente.
- Não faz mal, eu espero... Olha! Deve ser a Vingança. Vou abrir.
- Obrigado.
- Que trazes aí Ira?
- Brownies.
- Ai que maravilha! Ainda estão quentes. Já sinto o chocolate.
- Que chá preferem meninas? Verde ou Preto?
- Preto.
- Preto.
- Olá. Brownies. Que bom. Já estava com saudades dos teus brownies Ira.
- Já somos duas...
- Ainda bem que os fiz então. Estávamos a decidir o chá. Verde ou Preto?
- Preto.
- Decididamente preto. Uma coisa forte para nos animar.
- Sim.
- Trouxeste o jogo Maldade?
- Já sabes que nunca me esqueço de nada... ia lá deixar o jogo em casa?
- E qual trouxeste.
- Trouxe um novo, “Settlers de Catan”.
- É de quê?
- Estratégia.
- Os meus favoritos.
- Já fui.
- Eu também Fome.
- Ná, é fácil, vão ver.
- Já são cinco. Começamos?
- Sim, sim... que os brownies já estão a implorar que os devore.
- Faz-te a eles Fome.

Reunião de família II

Eu tenho a certeza de que ele me anda a trair com aquela branquela! Tenho a certeza! Sempre reparei nos olhares prolongados, no humedecer dos lábios, nos cumprimentos demorados... mas ignorei. Nunca pensei que ele fosse fazer uma coisa dessas ao primo. Ele matava-o! Desde que ele se foi embora as dúvidas instalaram-se. Ele, ora ignora-me dias a fio, ora vai para o roupeiro e fica a olhar para os Sapatos durante horas. Ela é capaz de tudo. Bem sei como ela explorou aqueles anões estes anos todos, e agora sem dinheiro, sem nada, é capaz de tudo para voltar para a sociedade. Detesto que ela venha cá ao palácio mas ele insiste, dizendo que ela é família. Sabe que eu não gosto e ainda me obriga a ser eu a fazer o convite! Odeio-a. Não suporto vê-la assim tão magra, tão elegante. Deve ser uma daquelas dietas novas. Eu não consigo manter nenhuma, cada vez me apetece comer mais e cada vez estou mais gorda. Ela deve é passar fome, só pode ser isso, porque aquela boa forma na idade dela não é natural! Se ao menos eu conseguisse deixar de comer.
Lá vem ela e ele já a está a comer com os olhos. Olhem só: começa por baixo e vai subindo discretamente, discretamente. Qualquer dia apanho-os! Eu bem mando os meus espiões segui-lo mas eles nunca voltam. Qualquer dia não há um único rato na cidade. Ainda bem que a madrinha me deu umas dicas e eu lá consigo transformá-los em criados fiéis. Não confio em mais ninguém nestes assuntos tão particulares. Mas custa-me, fico sempre muito cansada. E com fome. A magia exige muito de mim.
Oh, ohh, lá está o aperto de mão suave, prolongado, suave, quase sensual... Eu vou descobrir. Já estou com fome só de me enervar...e ainda por cima depois de jantar temos o concerto de flauta daquele músico estranho e enfadonho. A música é completamente banal mas o meu marido adora-a. Eu por outro lado, sempre que ouço aquela flautinha insípida encho-me de tédio e de fome, e não é a jantar duas vezes seguidas que eu vou recuperar a minha silhueta!
Lá vão eles... conversinhas, segredinhos e risinhos. Eu vou apanhá-los, e, quando os apanhar eles vão ver! Vou pôr em prática mais um ou dois feitiços que a madrinha me ensinou... Ah! Javali assado, adoro javali.

Miséria e podridão

Conseguia sentir as térmitas a corroer por dentro a perna, escavando túneis e zunindo não o deixando dormir.
Já tinha visto um buraquinho ou outro junto ao calcanhar escurecido, e, aquele presságio de pó acumulado em cima do cartão humedecido. Naquelas manhãs cinza arrumava tudo o mais rápido possível para ser um dos primeiros a chegar e ter direito a alguma comida ainda quente. Não era propriamente por fome mas para sentir o calor que se esfumava e embatia naquele rosto velho, calejado e frio. Era a melhor coisa do mundo. Havia noites, e havia dias, em que sonhava com aquela água de lavar café a esfumar e a envolve-lo em fios de calor como uma aranha a envolver a sua presa em delicados fios de seda. Fazia lembrar... Fazia lembrar outros tempos que recordava com algo que ele sabia ser diferente da saudade mas não sabia bem definir. Não encontrava um bom termo e depois esquecia enquanto terminava o pequeno almoço rarefeito.
Caminhava ao ritmo de um compasso oco que ressoava em todo o corpo. Ele sabia que isto era o princípio da podridão, a miséria já tinha chegado há muito.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Encontro

Enquanto caminhava sentia que já vinha tarde mas pensava constantemente que ainda dava tempo.
Tinha estado preso e não havia nada a fazer. Tinham-no vindo buscar a casa para um interrogatório. Quando ouviu o carro chegar pensou esperançosamente que tivesse chegado mais cedo mas mal afastou a cortina e os viu aproximar da porta percebeu imediatamente que era um mau sinal. Hoje não era um bom dia para o virem buscar. È claro que estava preparado mas o desanimo transparecia na sua cara barbeada de fresco.
Já tinha aquele marcado desde a última vez que tinham estado juntos. Uma sexta-feira à noite em que se sentia particularmente só, até ela aparecer.
Levaram-no para a esquadra e ele entrou calmo como de costume, já estava habituado a estas visitas. Era o melhor no seu ramo. Ao entrar, quase conseguiu sentir o cheiro dela a esvanecer, como quando ela saía da cama muito devagarinho. Estava a escapar-lhe.
Foi directo para a sala de interrogatórios e sentou-se na cadeira almofadada junto do gravador retrogrado. Pensou que talvez fosse rápido e ainda desse tempo, afinal ele já se preparava para aquilo há muito tempo. Ele entrou finalmente. Um homenzinho calvo e patético, um verdadeiro monte de lixo urbano.
Começou o interrogatório e o confronto com as provas foi esmagador, não havia maneira de escapar. Conseguiu uma confissão. Olhando para ele ninguém diria que aquele monte de esterco contemporâneo recrutava mulheres pela Internet que pouco tempo depois apareciam mutiladas a boiar no rio. Finalmente tinham-no apanhado, foi difícil mas conseguiram.
Já sentia o calor do seu corpo a deixar os lençóis foleiros que tinha na cama e enquanto caminhava sentia que já vinha tarde mas pensava que ainda havia tempo.
Quando finalmente chegou junto da porta viu o papel velho e rasgado enfiado na frincha larga entre a porta e a soleira. Só dizia isto: ”O teu tempo acabou, vemo-nos depois.” Amarrotou o papel com fúria, abriu a porta e atirou o casaco para cima do cabide. Sentou-se pesadamente no sofá e percebeu que tinha demorado imenso tempo para encontrar alguém como ela. Era cada vez mais difícil encontrar uma puta de qualidade.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O busto

Acabei de receber as compras. A minha vida agora tem sido muito mais fácil, é só clickar e pouco tempo depois lá estão elas a ser descarregadas na porta da frente. Chegaram as tintas, o verniz o gesso, os pincéis...que encomendei há pouco. Decidi abraçar um novo hobby: o restauro. Não sou muito talentosa mas há uns dias decidi fazer umas limpezas no sótão e encontrei um busto espectacular mas um pouco danificado.
Tinha o nariz partido e algumas mazelas esbranquiçadas no pedestal negro que ainda assim não lhe conseguiam tirar a altivez. O cabelo apanhado, a gola folheada, os ombros distintos e notava-se ainda aquele porte esquecido de nobreza.
Tentei em vão descobrir quem era mas não trazia nenhuma indicação nem me lembro de ver alguém parecido nas fotos de família. As coisas com que estava encaixotado também não ofereceram qualquer pista. Não devia ter sido muito caro no entanto porque aparentava ser de gesso ou um material semelhante. Podia até ter sido feito em série mas não sei bem porquê isso não me parecia muito plausível. Decidi então, como já vos tinha dito, restaurá-lo. Talvez me revelasse alguma coisa no processo ou eu conseguisse descobrir alguma coisa no fundo da minha memória.
Decidi limpá-lo com água e um pano de algodão húmido para começar. Limpo era ainda mais difícil desviar o olhar. O branco salientava a imponência daquele rosto. Sei que é um cliché mas parecia mesmo que me seguia com o olhar.
Refiz o nariz o melhor que pude com o gesso de paris e depois branqueei-o com alguma tinta acrílica branca dissolvida em água. Quando terminei até ficou bem mas achei que havia ali qualquer coisa que não estava bem ou estava qualquer coisa em falta. Quando dei por mim estava a desenhar flores na camisa. Não sei muito bem como fiz aquilo mas consegui desenhar umas rosinhas vermelhas muito pequeninas protegidas por três folhas escuras. Fiquei surpreendida comigo própria e estava com vontade de continuar mas já era tarde e decidi parar para comer qualquer coisa. Mais uma vez parecia seguir-me pela casa e tive de o tapar com um pano para poder comer mas mesmo assim conseguia sentir o olhar a procurar-me.
Fui-me deitar mas não dormi muito bem e quando acordei só pensava em terminar o busto. Conseguia quase ver como iria ficar quando estivesse pronto. Pintei os cabelos de castanho terra queimada. Para a pele tive de fazer algumas experiências até encontrar aquele som de moreno dourado que tinha na minha cabeça. Não me consegui decidir com a cor dos olhos e acabei por pintar o dourado do travessão e do fio que trazia ao pescoço. Quando dei conta já era noite outra vez e decidi ir dormir.
Não dormi bem novamente. Sonhei com o busto toda noite. Com aquela mulher de olhos brancos que me perseguia e me dizia: - Liberta-me! Liberta-me!
Acordei ainda mais cansada do que quando me tinha deitado e assustada. Achei melhor não trabalhar no busto nesse dia mas sentia sempre o seu olhar nas minhas costas e voltei a tapá-lo. Não resultou e comecei a sentir-me um pouco pateta mas não consegui evitar de o virar para uma parede. Foi melhor mas continuava desconfortável.
Trabalhei no computador, fiz algumas compras, reguei as plantas e vi um pouco de televisão no sofá onde acabei por adormecer. Tive o mesmo sonho com aquele pedido que agora parecia desesperado: - Liberta-me! Liberta-me...
Acordei sobressaltada, olhei para o busto e avancei. Sentei-me à mesa e estava determinada a termina-lo. Tirei-lhe o trapo, virei-o para mim e comecei a misturar as tintas até encontrar um castanho luminoso que iria ocupar o seu lugar no branco dos olhos. Uns laivos mais escuros e quase conseguia ouvir aquela voz enquanto terminava.
Quando terminei fiquei a olhar para ela enquanto ela olhava para mim e juro que vi os seus lábios a mexer e o som a formar aquele pedido: - Liberta-me. Não sei bem o que se passou a seguir mas acho que com o medo devo ter atirado o busto para o chão, porque quando dei por mim ele estava estatelado no chão de costas para mim e podia ver os cacos espalhados. Pensei que estava finalmente a ficar doida por estar sempre fechada em casa. Peguei nele para avaliar os estragos ou deitá-lo fora, já não sei bem, virei-o para mim e desmaiei.
Quando acordei foi só tomar consciência do que tinha acontecido e recompor-me para fazer o que tinha de ser feito.
Aquela foi a primeira vez em três anos que saí de casa e fui até ao jardim nas traseiras que pagava ao jardineiro para embelezar todos os meses mas que eu só via da janela. Fiz uma cova e meti lá dentro a cabeça mumificada que estava escondida no interior do busto. Juntei o que restava dele, cobri tudo com terra e achei por bem fazer uma oração.
Fiquei ali alguns minutos a ouvir o vento que parecia murmurar um agradecimento para longe...

A visita

Foi difícil vê-la ali, longe. O cabelo mais curto mas com aqueles caracóis rebeldes que teimavam em surgir contra a sua vontade. Gostei especialmente daquele por baixo da orelha esquerda que lhe protegia o lóbulo e lhe escondia o brinco que não podia usar.
Era a primeira vez que a via desde algum tempo e estava ansioso. Ela deixava-me louco e podia fazer de mim gato sapato se quisesse, mas, parecia optar pelo contrário. Sempre submissa, sempre na minha defesa. Era o meu escudo contra o mundo. Protegia-me.
Não sei se o fazia por ser da sua natureza, ou, se, para me dar aquela sensação de poder que eu não tinha... Ela gostava disso, eu sei. Eu também gostava, ela sabia-o.
Os meus problemas desapareciam. Era só desabafar com ela durante o jantar ou naquela conversa morninha de cama que os meus problemas desapareciam no dia seguinte.
Não sei que tipo de amor era. Carnal, físico mental ou total...daqueles que só se encontra uma vez na vida. As coisas funcionavam bem connosco e éramos felizes. Fomos felizes aqueles anos todos. Eu não desconfiei de nada.
Não desconfiei das dívidas perdoadas nem dos prazos prolongados e entreguei tudo à boa sorte. Agora vejo que fui ingénuo. A boa sorte não dura para sempre.
Foi mesmo difícil vê-la ali com aquele uniforme baço que lhe prendia o corpo esguio que senti vibrar mal me escutou aproximar. O sorriso fácil e solto em crescente suavizava-lhe o rosto.
Virou o rosto levemente para o lado vazio e o sorriso parou. Deve ter sentido o meu olhar que raiava a pena... Ela detestava isso. Era só saudade mal interpretada mas ainda assim tentei mudar a expressão.
Ficamos assim calados durante algum tempo até juntar coragem suficiente para lhe perguntar novamente:
- Porque é que fizeste aquilo tudo?
E ela deu-me exactamente a resposta que eu não queria ouvir:
- Pensei que já sabias... que já tinhas compreendido...
Levantou-se, disse adeus com os olhos e com o corpo, dirigindo-se em direcção ao guarda que a levou de volta à cela.Fomos felizes em tempos, se calhar até demais.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Seda turca

- Quer beber alguma coisa?
- Quero. Mas trata-me por tu. Estamos entre amigos aqui.
- Estamos? Não conheço ninguém.
- Nem eu, mas estamos no nosso ambiente. São todos como nós.
- Como nós?
- Sim. Solitários à procura de um pouco de diversão. Não é isso que queres? Que queremos todos?
- Não sei. Não costumo falar pelos outros...
- Nós falamos sempre pelos outros. Falamos mais pelos outros do que por nós próprios, mas seja... Não é isso que queres?
- Isso o quê?
- ...diversão...
- Sim. Acho que sim.
- Achas?
- Não foi para isso que vim mas não me importo se levar alguma para casa.
- Nem eu.
- Já temos algo em comum...
- E onde é essa casa para onde a levarias?
- Ela quem?
- A diversão...
- Não é bem uma casa. É mais um quarto de hotel.
- Ainda melhor. Mais diversão podes levar para lá, nunca ficas com remorsos pelos estragos que fazes.
- Estragos?
- Sim. Estragos. Mobília marcada, quadros caídos, jarras partidas e candeeiros tombados...coisas assim.
- ...
- Não olhes assim para mim, fico embaraçada. O que é que foi? Nunca te aconteceu partires uma jarra ou tombar um candeeiro numa altura ou noutra?
- Não...
- É pena...tens de experimentar.
- Parece que sim.
- Mas onde é esse quarto de hotel?
- Na baixa. O “Lindley”.
- Tu estas no “Lindley”?
- Estou.
- Aquilo é fantástico. Só lá estive uma vez mas adorei. É mesmo muito bom.
- Queres ir lá outra vez?
- Fazer o quê?
- Não sei. Talvez divertires-te um pouco. Não é isso que queres? Não é isso que queremos todos?
- Aprendes rápido. Pode ser. Talvez ainda partas uma jarra ou duas...
- Quem sabe?
- Vamos?
- Vamos. Vou só pagar a conta e apanhamos um táxi à porta.
- Um cavalheiro...



- Então? Como correu?
- Correu tudo como previsto.
- Quando achas que o vão encontrar?
- Amanha de manha. O serviço de quartos vai dar com ele.
- Qual vai ser o resultado da autópsia?
- Overdose.
- Ele deu conta de alguma coisa?
- Não. Nem deu conta do que lhe aconteceu. Já sabes como sou. Sou sempre muito suave.
- Suave, suave... como seda turca.

sábado, 21 de julho de 2007

Merimvau

“Eu sou Merimvau e tudo isto é meu. Aqui, além e adiante. Este é o meu domínio. Quem ultrapassar os seus domínios sem ser convidado será destruído. A solidão é um privilégio que a mim concedo.”
Era o que dizia um dos letreiros, escritos à mão em tinta vermelha, espelhados a intervalos regulares ao redor da propriedade. Nunca nada, nem ninguém, lá entrava, e, nunca nada, nem ninguém, de lá saía. Não havia cultivo dos campos nem cuidados com o jardim. A relva parecia nunca crescer mais que dez centímetros e os corvos não sobrevoavam sequer os campos. Pareciam ter lido também os avisos.
Por vezes, nas raras noites limpas, era possível verem-se as luzes a acender e a apagar como se alguém estivesse a atravessar as diferentes divisões da casa e fosse alumiando o seu caminho. Era estranho. Simplesmente estranho.
Ninguém sabia a sua idade e ninguém se lembrava sequer de o ter visto, mas... corriam os boatos. “...Quem tinha ignorado o aviso nunca mais tinha voltado...” diziam as pessoas num tom de voz decrescente e olhando inclinadas para o chão com aquela expressão de saudade, como se lhes tivesse desaparecido alguém próximo. Também havia um outro pormenor estranho que favorecia a intriga e afastava os curiosos: a cerca. O ar, quente, húmido e metanoso da região pantanosa fazia com que tudo apodrecesse mais rapidamente, mas, aquela cerca de madeira polida, sem qualquer adorno, continuava como sempre esteve - impecável.
Uma vez, dizem as vozes sussurrantes, foi atingida por um raio numa daquelas velhas tempestades tropicais e todos a viram arder mas no dia seguinte lá estava ela como sempre esteve. Ninguém a viu ser reparada. Ninguém viu nada.
Um dos comerciantes locais com quem travei amizade disse que se eu não acreditasse podia sempre fazer o mesmo que os outros: “Faça uma marca numa das tábuas, espere, e, veja se ela ainda lá está depois do Sol nascer”.
Não fiz uma, fiz várias marcas em tábuas diferentes e esperei como um observador da BBC camuflado pelas plantas. Não aconteceu nada durante toda a noite mas mal o sol nasceu fui inspeccionar e as tábuas estavam como sempre estiveram – impecáveis.
Definitivamente afastava os curiosos. Afastou-me a mim. Um homem pode não ser uma ilha mas pode ser um rochedo ermo e vazio se tiver uma cerca suficientemente forte, afinal, a solidão não é mais que um privilégio que concedemos a nós próprios.

domingo, 15 de julho de 2007

Areia

A princípio não lhe era uma sensação estranha. Nem má. Aqueles pequenos grãos arredondados a entranharem-se por entre os dedos dos pés fizeram-no deslizar para um tempo em que ainda era livre. Lembrou-se das idas à praia nos fins-de-semana escaldantes. Das sombras projectadas na minúscula tenda às riscas. Do encher dos baldes. Daquela espuma salgada e instantânea que nunca conseguia agarrar. Lembrou-se dos castelos, de sonhar.
Não sabia bem se era da areia ou das drogas mas sentia-se nostálgico. Quanto mais areia sentia mais se recordava. As brincadeiras com os amigos de ocasião. Os jogos de futebol nos areais imensos. As corridas. Os empurrões para a água fresca e viva.
Não sabia bem porque se tinham lembrado de fazer aquilo mas também não interessava muito. Não se sentia mal e isso era o mais importante. Era por isso que tomava sempre mais uma dose, para não se sentir mal. E outra. E outra...
A areia caiu no peito e sentiu os corpos bronzeados. Suados. Ásperos do sal e da areia que se enroscavam nas toalhas mal estendidas por trás de um pára-vento mal amanhado. Ainda era livre nessa altura. Sentia-o e sabia-o agora que já não o era há algum tempo.
Tentou posicionar-se melhor mas sentiu alguma dificuldade em mover as pernas. Sentiu a areia mais pesada sobre o peito. Os movimentos saiam em câmara lenta e aprisionados pelas fortes amarras da areia molhada. Tudo parecia estar a acontecer a ritmos diferentes ou eles eram mais rápidos e mais fortes do que ele. Berrou mas eles não ouviram, ou se ouviram, já não estavam ali. Eles também não eram livres. Já não o eram há algum tempo.
Susteve a respiração e sentiu o peso da areia húmida a comprimir o peito, os pulmões prestes a explodir naquele tronco estreito. Forçou a situação o mais que pôde mas já podia sentir a areia a invadir os sentidos.
Não aguentou, e, a torrente de areia forçou a sua entrada. Sufocou em silêncio num túmulo de areia, água e sal.Os outros ainda continuaram a deitar areia durante algum tempo. Talvez daqui a um dia ou dois se lembrem do que fizeram. Ou não.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Roupa nova

Era vê-la sentada de lado, virada para a imensidão de sacos que viajavam a seu lado numa qualquer viagem de metro. Uma daquelas igual a tantas outras que nada tem de extraordinário excepto, por vezes, aquela borboleta que entra a voar em círculos para sair na estação seguinte.
Lá ia ela espreitando as compras com um ar de criança num parque de diversões, com tantos sítios para ir que não se sabe bem o que escolher. Ela emanava uma felicidade juvenil que todos na carruagem conseguiam sentir, e, ela já não aguentando o desejo , olha para um lado e para o outro, como quem atravessa a rua e começa a retirar de uma das sacas, ao calhas, uma das peças de roupa nova. Estende-a em cima das coxas. Corta a etiqueta com a chama rápida do isqueiro e levanta-a no ar para a ver uma outra vez. Uma camisola preta de manga ¾ a imitar um casaco de trespasse. Dobra-a cuidadosamente. Outra. E mais outra. Umas calças pretas de cinta descida, um blaser preto com remendos nos cotovelos e uma aplicação prata na gola, uns jeans pretos, uma blusa clássica preta, uma blusa de estilo oriental com motivos antracite, top’s pretos, t’shirts pretas, ... Outra. E mais outra.
O brilho nos olhos aumentava a cada peça nova que pegava e as pupilas pareciam até dilatar para um tamanho fora do normal, transformando os seus pequenos olhos castanhos em dois botões negros.
Pegou em todas as peças que tinha dobrado cuidadosamente e tentou meter tudo dentro da maior e mais discreta saca que trazia consigo. Não conseguiu e ficou um pouco atrapalhada, como se quisesse esconder a roupa nova que antes mostrara a quem quisesse ver. O aviso sonoro indicou a próxima estação e a aflição cresceu, acabando por meter parte da roupa numa saca translúcida com letras laranja vivo. Levantou-se, respirou fundo, carregou no botão para abertura da porta e saiu o mais discretamente possível. Acredito que não quisesse dar nas vistas, as más línguas nunca são muito simpáticas para as viúvas recentes.

Página em branco

Onde é que ela tinha ido? O que tinha feito? Teria sido feliz? Infeliz? Teria saído sozinha? Foi um dia para esquecer ou um dia insignificante?
Aquela página em branco tolhia-lhe o espírito.
Ela tinha partido há cinco meses, três dias e vinte e uma horas, e, desde aí ele tinha lido todos os seus diários para a manter viva. Leu-os mais de que uma vez, repetidamente, até saber todas as palavras, todas as vírgulas e todas as pausas. Ao fim de um tempo recordava-se da vida dela como se fosse a dele. Todos os pormenores, todos os detalhes estavam ali transcritos naquela letra de professora primária. Não saltou sequer aqueles momentos embaraçosos que nenhum marido quer verdadeiramente saber. Leu tudo e para ele era como ter estado com ela todos os dias da sua vida. Todos, excepto aquele. Uma página em branco com a data cuidadosamente escrita numa imensidão de linhas em branco que pareciam não ter fim. 8 de Julho de 2002. A escrita tão cuidadosa que as próprias curvas das letras davam a sensação de aquele ter sido um dia diferente e especial até. Ela não avançou a data como já tinha feito com outros dias. Deixou a folha em branco para recordar. Mas o quê? O quê?
Era só um dia que não tinha sido partilhado com ele mas se ele não soubesse nada sobre esse dia então também não sabia nada sobre ela. Era mais uma estranha com que se tinha cruzado e isso era um pensamento aterrador. Lia e fazia esquemas temporais, ligava à família, aos amigos, aos colegas de trabalho, vasculhou jornais e procurou recibos antigos. Nada. Era um vazio insuportável que ninguém conseguia preencher. Desleixou-se de tudo menos da vida dela e daquele dia, daquela página em branco. Foi-se esquecendo de si. Confundiu a sua vida com a dela e vivia num limbo de memórias falsas, num quarto imundo de recortes, fotos, esquemas, calendários e folhas de diários espalhadas pelos cantos e estragadas pela humidade forçada do quarto.
Quando as pessoas nos fogem agarramo-nos à mais pequena coisa para as trazer de volta para junto de nós, mesmo que essa coisa seja uma insignificante página em branco num diário velho.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Bicho que a gente come...Parte dois

...
Não sei quantas horas estive inconsciente. Só me lembro daquele episódio repugnante que preferia esquecer. Devo ter desmaiado de seguida. Está tudo muito silencioso. Sinto-me fraco e apesar de tudo o que se passou sinto fome. Devo ter estado inconsciente mais tempo do que aquele que penso.
...
Eles estão mortos. Todos. Por todo lado vejo vermes esticados. Funcionou. Morreram todos. Finalmente estamos livres. Vamos poder voltar para as nossas casas e os nossos países.
...
Continuo com fome. Por mais frutos que coma continuo com fome. Sinto-me fraco.
...
Passaram dez dias desde que acordei. Continuo com fome. Sinto-me cada vez mais fraco.
...
Estou cada vez mais fraco e mais forte. Não sei explicar. Sinto uma fome como nunca senti mas por outro lado os meus sentidos estão cada vez mais eficazes, consigo percorrer distâncias incríveis num curto espaço de tempo e a minha força aumentou consideravelmente. Continuo com fome.
...
Vinte dias. Continuo com fome.
...
Já não sei quanto tempo. Já só sinto fome.
...
Fome.
...
Fome.
...
Ouvi passos distantes. Dirijo-me para lá mesmo antes de pensar nisso. Será que finalmente me vieram buscar? Ouço vozes, conversas soltas trazidas pelo vento. Espero que tragam comida. Tenho tanta fome.
...
Encontrei-os. São um grupo de cinco. Armados. Militares de reconhecimento. Há qualquer coisa que não está bem. Não vou ter com eles e espero pelo momento certo. A chuva começa a cair. Continuo a segui-los de perto.
...
Encurralei-os numa escarpa. Alguma coisa está a tomar conta de mim.
...
A fome. Não consigo controla-la. Ataco-os de surpresa e sem piedade. As armas não me atrasam e as minhas feridas parecem sarar logo de seguida. Tento resistir mas não consigo. A fome tomou conta de mim. Sinto o odor do sangue a entrar-me no nariz, a inundar-me os pulmões e a inebriar-me os sentidos. Desfaço um dos cadáveres com os dentes. E mais um. E outro. Até não restar nenhum vestígio deles.
...
Levanto-me e vejo o meu reflexo numa poça de agua. O rosto ensanguentado e penso...
...
Parece que é verdade... sempre somos aquilo que comemos.
...
Tenho fome. Muita fome.
...
Acho que vou para casa. Não vão negar entrada a um dos seus.
...

Leonardo

Era uma pessoa normal, tanto quanto se pode ser. Um pouco isolado talvez, e conheciam-se-lhe poucos romances. Falava pouco com os vizinhos, só o estritamente necessário. Tinha um carro pequeno, branco e barato. Poderia até dizer-se que era uma pessoa triste não fossem aqueles dias em que aparecia com um sorriso de alegria secreta e maliciosa.
Começou a trabalhar lá no museu mal saiu da faculdade e foi subindo de posto. Era um trabalhador exemplar. Não havia trabalho que ficasse por fazer, nem que para isso tivesse que trabalhar a noite toda. Falava tanto com os colegas como falava com os vizinhos. Almoçava sozinho os restos do jantar que trazia de casa e que aquecia suavemente no microondas da sala comum. Fazia isto o mais rápido que podia e depois ia passear pelo museu. Gastava os seus restantes 56 minutos de pausa para almoço a passear pelo local de trabalho. Alguns consideravam isto estranho mas ele nem sequer prestava atenção aos comentários. Era vê-lo circular calmamente pelo museu e parar sem aviso prévio para ficar a admirar uma peça nova. Nos dias seguintes apenas aquela peça interessa...Até parecer ter retirado toda a informação, todas as mudanças de cor e luz, o pormenor das pinceladas curtas e precisas. Depois volta à rotina dos passeios até encontrar uma nova vítima para analisar com os seus olhos luminosos. È assim que o encontramos hoje: a olhar para uma peça nova como se não existisse mais nada para ver. Um estado hipnótico quebrado apenas pelo lembrete do telemóvel indicando que está na hora de ir trabalhar.
O trabalho na secção hoje está atrasado e mais uma vez voluntariou-se para umas horas extraordinárias. Diz ele que não tem família em casa e o dinheiro faz-lhe jeito. Na verdade não precisa mas quer vir para o museu.
Vai a casa tomar um banho, trocar para uma roupa mais confortável e jantar qualquer coisa rápida. Pega na caixa dos comprimidos e sai. Tudo muito rápido com ansiedade crescente para não chegar tarde. Entre no café da frente e compra cinco cafés para levar, acelera o passo ao atravessar a rua e chega ao museu no momento exacto: a troca de turnos. Oferece dois cafés aos seguranças da noite que sorriem e agradecem a amabilidade inocente, uma coisa rara.
Ruma para a sua sala bebendo calmamente um dos cafés restantes. Adianta algum serviço enquanto controla o tempo.
Vinte minutos devem ser suficientes.
Sai da sala silenciosamente e esgueirando-se para não ser visto pelas câmaras dirige-se ao gabinete de segurança. Dormem os dois nas cadeiras. Aproxima-se, desliga os alarmes e põe o sistema de vídeo em loop. As coisas que se conseguem aprender na Internet são realmente fantásticas. Ao ir para a secção 3 passa na sua sala e apanha o porta-projectos que tinha trazido dois dias antes e a sua pequena mala de ferramentas.
Pára diante do quadro, retira-o da parede e vira-o ao contrario. Retira a tela com muito cuidado e substitui-a pela cópia que fez em casa, pormenor a pormenor. Coloca tudo no sítio e confirma os pormenores. Guarda o porta-projectos e a mala na sua sala, pega nos dois cafés extra e volta ao gabinete de segurança. Substitui os cafés dos seguranças, deixa-os com a mesma quantidade de líquido e no mesmo local, activa os alarmes e retira as câmaras do loop. Volta sorrateiramente para a sua sala, fecha a porta atrás de si e continua o seu trabalho como se nada se tivesse passado.
Acabou o trabalho. Vai para casa e a ansiedade agora parece surgir do nada, mal consegue rodar a chave e entra em casa com uma azelhice descabida. Coloca a tela na parede, acende a lareira e senta-se no sofá. Admira-a. Absorve todo o seu conteúdo. Agora é sua. Fica assim durante horas até já não haver mais nada para olhar porque já faz parte dele.
Levanta-se, retira-a da parede e atira-a para a lareira. Para junto das cinzas das outras, e, nem sequer olha para trás quando se desfaz em labaredas soltando aquele odor metalo-químico da tinta.
Sobe as escadas e vai tomar um banho. Já são horas de voltar ao trabalho.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Bicho que a gente come...

Não se sabe bem como chegaram mas foi à cerca de dez anos. Parece um lugar comum batido num filme de ficção B mas é verdade. Destruíram tudo o que apanharam . Mataram milhões de pessoas e outras tantas tiveram de abandonar as suas casas. Agora vivemos nos pólos e nos desertos. Os extremos não são bons para nós, mas também não são para eles, e, impedem-nos de atacar. Ficamos protegidos aqui, por enquanto. O clima está a mudar rapidamente...
Ainda não se conseguiu descobrir uma fraqueza, um calcanhar de Aquiles. Resistem a tudo, regeneram-se, e, quando cortamos ou esmagamos um, surgem dois. Nada parece funcionar e o seu apetite não para de crescer. Mal sentem a presa multiplicam-se exponencialmente em poucos minutos e atacam, Rodeiam a presa como formigas e em menos de cinco minutos alimentam-se de um ser humano. É impossível escapar. Se nos encurralam passámos a história.
Não é um espectáculo bonito de se ver.
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Trabalho no CIB(A) – Centro de Investigação Biológica, secção do Alasca. Aqui estamos reunidos, militares e cientistas de todas as partes do antigo mundo, para tentar encontrar uma saída. Uma maneira de os destruir. Eu fui o escolhido para pilotar o avião que vai testar a 136, um químico de acção letal que tem funcionado bem nas simulações de laboratório. Vou aspergir quase toda a floresta tropical. Estão todos confiantes e acreditam que vamos reconquistar as nossas casas. Eu não crio muitas esperanças, afinal é a arma 136, mas ainda assim estou ansioso. Estamos todos. Ninguém se aventura para essas regiões há dois anos. Mas eu vou. Amanhã.
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A paisagem é linda. Verde. Infindável. Devia ser assim antes das madeireiras terem acabado com ela. Deve ser por isso que ela os abriga. Uma pequena vingança fria. Já ando a sobrevoar a floresta a cerca de duas horas. Ainda tenho combustível e 136 para mais de três horas mas só daqui a alguns dias saberemos o resultado.
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Um dos motores falhou e tentei aterrar numa clareira, não sei bem porquê, afinal vou morrer e vou ... e uma explosão é sempre mais agradável do que o que me espera, mas nunca se sabe: o 136 pode ser mais rápido e eficaz do que se pensa.
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Não é. Perseguiram-me toda a noite. Ouço-os moverem-se rapidamente no escuro e sinto o odor fétido característico. Corro sem ver para onde vou nem o que se passa a minha volta. Não quero morrer assim.
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Fiquei encurralado numa parede de pedra. Corri até não poder mais e quando me virei já lá estava um. Não posso subir nem fugir, já o consigo ver a dividir. Vejo outros a chegar. Aqueles vermes nojentos com dentes afiados. Umas sanguessugas verdes com um apetite voraz. Eram dois, agora quatro. Daqui a pouco oito e depois dezasseis. Quando der conta já não existo debaixo de uma imensidão de vermes que me arrancam a carne como um exército de formigas assassinas. Um deles avança para mim e sinto medo. A adrenalina dispara e lembro-me de uma coisa que me diziam quando era puto. Agarro o que se dirige para mim e arranco-lhe a cabeça com uma dentada. Como-o Como-os a todos. Um por um. Uma gelatina viscosa e verde com alguns pedaços de cartilagem crocante que me dão voltas ao estômago. Mastigo bem. Um por um e imagino que são coxinhas de rã. Mastigo bem e sinto estômago a dar voltas e a revoltar-se. Aguento. Como-os a todos. “Bicho que a gente come é bicho que não come a gente” – dizia a minha avó Anabela.
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Vértice

Fico sempre triste neste dia... foi a última vez que o vi. A saudade é uma dor de quebra. Nunca mais fiquei completa. Era o amor da minha vida. Aquele Amor.
Ele apareceu no restaurante pela primeira vez a uma terça à noite, pediu o prato do dia e comeu sozinho. Tinha um ar tão sozinho. Voltou na quinta e atendi-o novamente.
Ele era bem parecido e aquele fato cinzento fazia parecer importante. Não resisti e meti conversa. Ele também. Voltou Sexta, depois segunda, depois quarta... foi voltando. Foi assim que começou. Saíamos à noite, depois da cozinha fechar, e, éramos felizes. Muito. Ao fim de seis meses engravidei. Acidentalmente. Não sabia como lhe havia de dizer. Não disse. Tive medo que pensasse que o estava a tentar prender. Decidi esperar e guardar segredo por uns dias. Agora penso que não o devia ter feito, mas fiz. Foi a minha escolha.
Ele desapareceu. Nunca chegou a saber que tinha uma filha. Nunca a chegou a conhecer. A nossa filha. E a nossa neta. A minha filha é mais parecida comigo mas a minha neta é a cara chapada dele. Tem aquele aspecto importante e o tempo parece não passar por ela como passa para toda a gente. É linda. É a alegria e orgulho desta casa. Nunca as conheceu... é uma pena. É uma dor que não se apaga.
Tanto quanto sei abandonou-me. Sem uma palavra. Sem uma notícia. Abandonou-nos, a mim, e, a minha filha. Abandonou-nos, a nós, e, a mulher. Foi ela que apresentou queixa. Nunca mais ninguém o viu mas não consigo guardar mágoa... e, se ele voltasse, eu ia estar de braços abertos para o agarrar e jamais o ia deixar partir outra vez. Seria meu para sempre.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Passion fruit

Ultimamente ando tão cansada. Tão cansada. Tudo me cansa: descer da cama, descer as escadas, abrir a água, ligar o fogão, abrir os olhos, fechar os olhos. Tudo. Ando assim há uns meses mas a vida continua. Uma pessoa esforça-se. O pior são mesmo os dentes que começaram a ceder. É a idade. Só me sinto bem de tarde, no jardim, quando me sento à sombra da minha árvore do maracujá. Tem sido a minha companhia. O meu apoio. E tem dado os seus frutos. Uns frutos deliciosos. Toda a gente o diz e me pergunta qual o meu segredo. O meu segredo? Amor e carinho.
Veio connosco, comigo e com o meu marido para esta casa. É a nossa fruta favorita. Plantamo-la com juras de paixão eterna na primeira lua cheia de Abril. Nos primeiros anos os frutos eram pequenos e mirrados e podia dizer-se que a árvore era anã. Podia até ser um símbolo do que se tinha tornado o nosso casamento. O Fredo trabalhava até tarde no escritório, dizia ele, mas chegava a cheirar a vinho e a pêgas. Vivia num choro constante. A árvore parecia compreender.
Um dia não aguentei mais e disse-lhe que me ia embora. Ele agarrou-me e bateu-me. Bateu-me. Saí a correr para o jardim para fugir. Ele correu atrás de mim, tropeçou numa das raízes salientes da árvore e caiu em cima de um ancinho da horta. Morreu ali. Sem gritos nem dor. Não chorei. Sem gritos nem dor. Peguei numa pá e escavei cuidadosamente por baixo da árvore do maracujá, tentando não estragar as raízes e enterrei-o. No dia seguinte de manhã fui à polícia apresentar queixa de desaparecimento do meu Fredo. Aí sim. Dor e gritos. Para todos os efeitos saiu depois do jantar e não voltou. Nem vai voltar é claro. Ao que parece o meu Fredo já era conhecido da polícia e ninguém se preocupou muito com ele. Nem eu com isso.
A árvore cresceu. Cuido dela como cuidava dele. Dou-lhe todo o meu carinho e ela corresponde. Cresce forte e dá-me os seus frutos deliciosos que é mais do que aquele ingrato me deu. Nos dias bons penso que é ele que... disparates.
Ela está aqui para mim. Adoro vir para aqui de tarde.Ando tão cansada. Tão cansada. Vou dormir um bocadinho.

Desvitalização

Quando é que descobri isto?
Não sei bem. Talvez há uns dois, três anos. Na altura tinha começado a trabalhar por conta própria e também me começaram a aparecer as primeiras rugas de expressão. Odeio rugas. Comecei a vê-las, a estudá-las. Optei pelos cremes. Nada. Lá estavam elas todos os dias, à noite, no espelho, quando o efeito do creme passava. Quer dizer, sempre não. Um dia apareceram bastante reduzidas e algumas quase nem se notavam. Fiquei especada em frente ao espelho a tentar perceber o que tinha feito de diferente, que creme novo tinha posto. E nada me veio a cabeça. Um dia como os outros. pensei: ”finalmente o dinheiro dos cremes vai render”. Uma semana depois estava especada outra vez em frente ao espelho. As rugas tinham desaparecido todas. Todas. Dei voltas à cabeça e finalmente vi o denominador comum entre estes meus dois dias – fiz uma desvitalização! Já não fazia uma há muito tempo. Na clínica anterior só me deixavam fazer os trabalhos menores, as limpezas e os tratamentos de cáries...
É claro que pensei: “Não sejas parva! Estás a perder o juízo e eu a ver...”. E as rugas voltaram algum tempo depois.
Surgiu a oportunidade de nova desvitalização, e, aquela ideia não me saía da cabeça pelo que decidi arranjar provas. Fotografei todos os milímetros da minha cara antes e depois da desvitalização.
Era impossível não ver, parecia uma miúda de 23 anos! Linda e jovem.
Mas voltaram. Novamente. Não suportei ver-me assim feia e velha. Retorcida e marcada. A ansiedade dava cabo de mim e já pensava desvitalizar um dente a um qualquer paciente mesmo que o dente estivesse impecável. Eu sabia que era errado mas não o podia evitar. Foi o que aconteceu mas não o podia fazer outra vez.
Já não suportava o espelho. Felizmente nesta altura apareceu no meu consultório a D. Rosália. Uma adorável velhinha de 75 anos e com uns dentes num estado lastimoso. Foram tratamentos atrás de tratamentos. E desvitalizações. A senhora adorava-me! Via a minha necessidade de desvitalizações como uma sentida preocupação com o seu bem-estar...
- Vamos desvitalizar este dente D. Rosália?
- Não filha. Deixa estar, já não vale a pena. Mais vale arrancar.
- D. Rosália, tem um sorriso tão bonito! Quer ficar agora sem dentes? Quer mesmo tirar?
- Um sorriso bonito? Pronto, está bem, vamos desvitalizar.
Adorava-me! Até me chegou a trazer uns maracujás caseiros deliciosos. Deliciosos. De chorar por mais mesmo.
Lá fui andando intercalando a D. Rosália com desvitalizações ocasionais. Cada vez mais jovem, cada vez mais bela. A situação manteve-se até ao dia em que a minha assistente me entra a correr pelo consultório e diz muito emocionada:
- Sabe quem morreu?
- Quem?
- A D. Rosália!
- Não? Não pode ser!
- Foi. Também me custa a aceitar. Uma senhora tão simpática. Morreu esta noite e encontraram-na sentada numa cadeira do jardim.
- A sério?
- Sim. Ia lá brincar com isto doutora? Coitadinha. Uma senhora tão amorosa, mas ela realmente envelheceu muito nos últimos tempos. Cada vez que a via estava mais vincada.
Fiquei em silêncio e não consegui dizer uma palavra. Como é que eu ia fazer? As desvitalizações ocasionais não eram suficientes e muito irregulares. As minhas rugas já se começavam a notar e eu estava a contar com a desvitalização da semana seguinte. Foram uns dias horríveis. Horríveis, mesmo.
A sorte deve andar do meu lado e deve ser linda também. A D. Almerinda veio ao meu consultório. Uma outra velhinha adorável. Veio também a D. Rosa, a D. Elisa e a D. Paula. Estas arrastaram outras. E os maridos. E os filhos.
A D. Rosália gostava tanto de mim que falou do meu trabalho a todas as suas amigas...

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Coisas que acontecem


Segundo me disseram isto são coisas que acontecem, mas...eu não estou muito convencido!
Estava eu a lavar descansadamente a louça do pequeno almoço quando espreito para a rua pelo canto do olho, e, não é que, vejo um filho da mãe (para não dizer outra coisa) a riscar-me o carro novinho ao passar um buraco! Até me doeu a alma! Nem sequer pensei duas vezes e saí logo a correr pelas escadas abaixo. Quase tropeçava nuns miúdos que trocavam tazos no fundo das escadas mas quando lá cheguei a besta já se tinha pisgado (nota para o próprio: IR MAIS VEZES AO GINÁSIO!) Fiquei no passeio a tentar lembrar-me da matrícula e a olhar para o meu carrinho (e a dizer mal da minha vida) quando o filho da Noémia do 3.o direito falhou um chuto e acertou com a bola num vaso da senhora Henriqueta do 2.o andar. As tulipas amarelas caíram-me mesmo em cheio na cabeça. O vaso também foi mesmo em cheio, é claro.
Caí estatelado no chão! Segundo me disseram não havia meio de acordar, por isso, acharam por bem chamar uma ambulância. Para minha sorte esta veio bastante rápido, mas, o grande bónus foi o estagiário com sede de conhecimento e de prática. Muita sede. Como não conseguiu sentir a minha pulsação (tenho as tensões extremamente baixas verdade seja dita – o meu médico diz que se eu estivesse a dormir me declarava morto, o que é bem provável... ele não é muito bom médico.), achou que estava em paragem cardio-respiratória. O rapaz sequioso como estava decidiu fazer a massagem com muito empenho. Um pouco mais até do que o que era necessário porque me partiu uma costela! Como partir uma costela dói qualquer coisita eu acordei. O rapaz ficou todo inchado de contentamento. O seu primeiro salvamento...até ter percebido que as dores toráxicas eram demasiadas para quem levou com um vaso na cabeça... Ligaram as sirenes e lá fui eu a todo gás para o hospital mais próximo.
Ao passar o cruzamento do LIDL bateram num Renault Clio. Caí da maca abaixo e bati com a cabeça outra vez. Nova perda de sentidos. Nova ambulância que veio socorrer a ambulância e lá vou eu para o hospital mais próximo...outra vez.
O médico que me atendeu perguntou-me o que se tinha pensado, e, eu, contei-lhe exactamente o mesmo que contei a vocês. Ele só me disse: ”são coisas que acontecem”. Não sei porque, mas, isso na altura, não me animou muito – tinha o carro riscado, a cabeça cheia de terra, uma costela partida e umas dores de cabeça que faziam lembrar as ressacas dos tempos de faculdade!
Lá fui para casa de autocarro e quando cheguei meti a mão ao bolso para tirar a chave... e não a encontrei lá. Não a tinha trazido quando desci as escadas a correr. Bati com a cabeça na porta (estúpido acto reflexo) e vi no fundo da porta um fiozinho de água a correr. A água da cozinha! Bati novamente com a cabeça na porta (desta vez com vontade!).

sábado, 12 de maio de 2007

Corvos negros

É triste ter uma semi-existência camuflada de vida.
Agora chega quase a ser natural, já não fazemos aquele esforço para fingir que vivemos e sentimos através de um outro.
É tão bom quando podemos ser nós próprios. Quando as luzes se apagam, deixamos o nosso corpo e gozamos em pleno esta nossa existência eterna.
Se estiverem atentos podem ouvir o bater suave das asas como as dos pássaros aprisionados.
No fundo, é isso que nós somos. Pássaros enjaulados. E batemos as asas e tentamos voar, pairamos no ar.

Presos naquela jaula orgânica. Invólucro desconfortável, privativo dos sentidos e do espaço, que nos prende ao chão com algemas invisíveis.
Escravos. É isso que nos somos. Escravos condenados a vigiar seres insignificantes e sem glória. Velar por eles.
Vagueamos por entre a multidão. Somos aquele que vos fixa sem razão aparente, somos aquele que vos olha de relance. Somos aquele que vos vigia, somos aquele que vos impede. Somos aquele que vos ajuda, somos aquele que vos perturba. Somos aquele que vos inspira.
Amas sofisticadas. Anjos da guarda. Anjos de companhia. Somos corvos negros ansiando a liberdade.

terça-feira, 1 de maio de 2007

O Sr. Nate e o Sr. Benje*

O Sr. Nate e o Sr. Benje eram vizinhos, quer dizer, não eram, ou melhor eram mas sem o serem! Moravam na mesma cidade mas em lados opostos. O Sr. Nate morava na parte fina da cidade, com os seus casarões de séculos passados que apenas se abriam para sangue-azulados. Ou vermelho vivo, vivo como o dinheiro.
O Sr. Benje vivia no extremo oposto como ainda se devem lembrar, numa viela escura a transpirar de trabalho e orgulho. Os caminhos destes dois homens nunca se tinham cruzado até ao dia 25 de Março de 1930, altura em que o destino moveu as suas teias. O Sr. Nate tinha negócios a tratar, e, o Sr. Benje contas para pagar, pelo que embarcaram no mesmo barco rumo a locais exóticos e desconhecidos.
A viagem começou calma, com dias de sol e pouco vento, e, os passageiros aproveitavam para gozar um pouco de sol, sempre resguardados, é claro. Sol em excesso não é bom para ninguém e todos sabiam disso.
O barco era como uma pequena cidade por isso o Sr. Nate e o Sr. Benje ficaram novamente em lados opostos. Um na parte fina e outro na parte... bem, não tão fina! Aqui também não havia misturas, embora todos se cruzassem e apanhassem o mesmo sol de final da tarde, a noitinha todos regressavam para os seus respectivos aposentos. Na verdade, quase todos. Alguns pares de amores escondidos batiam asas mas isso é outra história. Voltemos ao Sr. Nate e ao Sr. Benje!
Ao terceiro dia de viagem o tempo foi modificando e as nuvens foram chegando, chegando devagarinho até se instalarem definitivamente e taparem o Sol por completo. Depois das nuvens chegou a tempestade e essa não foi chegando devagarinho...simplesmente chegou!
Chegou e sacudiu o barco com força, fez subir as ondas e virar o barco. O Sr. Nate caiu ao mar na sua cadeira enquanto lia um dos seus romances, e foi-se afastando assim a flutuar, sentado, debaixo de chuva e trovoada, sem ninguém dar conta. O Sr. Benje ia a correr para o seu quarto (porque nunca tinha gostado muito de trovoada que o fazia ficar com pele de galinha e arrepiava os caracóis da parte de trás da cabeça) e numa sacudidela caiu também ao mar agarrado a um guarda chuva, e, lá se foi afastando. O Sr. Benje abriu o guarda chuva, virou-o ao contrário e subiu a bordo. Passaram dois dias e três horas a navegar em águas desconhecidas até irem desaguar num pequeno monte de areia com algumas palmeiras e um riacho que a atravessava completamente a meio.
Chegaram os dois a ilha quase ao mesmo tempo: um sentado na sua cadeira de descanso a ler um romance e o outro a dormitar sentado no guarda chuva. O Sr. Nate desceu de sua cadeira, olhou em volta, atravessou o riacho e sentou-se numa rocha verde-acinzentada. O Sr. Benje foi a correr atrás dele mas quando tentou atravessar o riacho o Sr. Nate perguntou:
- O que pensa que vai fazer?
- Vou ter consigo, disse o Sr. Benje.
- Ai não, não vai. Este é o meu lado da ilha, respondeu o Sr. Nate enquanto o olhava de alto a baixo. Além do mais eu não me dou com seres da sua espécie, acrescentou sem o olhar nos olhos.
O Sr. Benje ficou tão indignado! Nunca tinha sido tão humilhado na vida. Ele que sempre fora um trabalhador honesto! Deu meia volta e murmurou entredentes:
- Não perdes pela demora!
Cada um fez um abrigo no seu lado da ilha e uma pequena fogueira. O Sr. Benje fez tudo mais rápido mas o Sr. Nate lá se desenrascou. Assim ficaram três dias a andar de um lado para o outro. O Sr. Nate acabou o romance e encontrou um baralho de cartas no seu casaco que resistiu a tempestade e entretinha-se a jogar solitário, o Sr. Benje ia ampliando a casa. Ao fim de uma semana já não fazia obras e o Sr. Nate já não suportava a ideia de jogar cartas sozinho. Ao nono dia foi até ao riacho e gritou.
- Quer jogar uma partida de cartas?
- Quem? Eu? Está falar comigo? Perguntou o Sr. Benje.
- Sim! Vê aqui mais alguém? Quer ou não quer jogar cartas? Perguntou irritado o Sr. Nate.
- Não obrigado. Eu não jogo cartas com pessoas da sua espécie, respondeu o Sr. Benje com um sorriso.
O Sr. Nate olhou-o com um ar de completa admiração e voltou para a sua pedra de jogo. Não houve mais troca de palavras mas não se preocupem meninos, eles não ficaram sozinhos. Um ficou com o ódio, o outro com a vingança.
*conto infantil

terça-feira, 24 de abril de 2007

O cavalo e o cão

Na minha rua, eu e os meus vizinhos, temos assistido a uma amizade, no mínimo estranha. Um cão e um cavalo. Surgem do nada, descem a rua e dirigem-se aos terrenos vazios. O cavalo pasta sob a vigilância atenta de um velho pastor alemã e ambos apresentam aquelas peladas de abandono. Um não vai para lado nenhum sem o outro.
O cão vem sempre à frente, inspeccionando o caminho, se avistar alguém começa a ladrar e o cavalo estaca na posição em que estiver. No passeio, sempre pelo passeio. Depois voltam a carga, o cão sempre à frente, claro, até chegar aos verdes.
Enquanto o cavalo escanzelado se alimenta o cão estaciona na sua posição de segurança e ninguém se pode aproximar sem ouvir uns latidos ameaçadores que afastam os mais curiosos. Isto acontece de manhã, de tarde e infelizmente de noite. De noite. Os cascos do cavalo ecoam pelos paralelos directamente para os ouvidos dos habitantes, e, os latidos do cão ao menor sinal de movimento ou passagem de veículos (já de si menos silenciosos) acabam com o sono descansado de qualquer um.
A revolta contra esta parelha começou a nascer aos pouquinhos entre as comadres. De coisa invulgar e com uma certa piada passou ser olhada com outros olhos e as vozes das comadres chegaram aos compadres. E compadre que se preze não quer cá coisas esquisitas na sua rua! Ainda por cima daquelas que tiram o sono e fazem as comadres ficarem rezingonas!
Foi organizado um grupo de ataque, e, um plano de acção. O Zé da barbearia, o Carlos da Loja, a Benilde das limpezas e João carpinteiro decidiram que o cavalo era muito grande para darem cabo dele sem darem muito nas vistas pelo que se viraram para o comparsa maligno, e, além do mais toda a gente sabia que o cavalo não ia a lado nenhum sem ele. Sem pastor não havia cavalo. Lançaram o isco. Um suculento bife cozinhado em veneno, daquele foleiro mas concentrado. O cão morreu logo ali no passeio. O cavalo ainda o tentou acordar mas no fim de algumas horas resignou-se. O brilho dos olhos negros era um pouco mais brilhante e mais triste. Nunca mais saiu daquele campo.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O vestido

A Dona Rosa lá do bairro sempre fora conhecida por ser a melhor costureira que tinha posto os pés naquela terra mal afamada, e verdade seja dita, fazia coisas que eram um primor. O pormenor dos bordados, as pinças delicadas e discretas, as bainhas invisíveis, os luxuosos vestidos de festa e os vestidos de noiva. Ai, os vestidos de noiva. Verdadeiras obras de arte. Era a costureira mais requisitada e mais dinheiro não fazia porque as mãos eram só duas. Quando a sua única filha Inês foi pedida em casamento Dona Rosa fechou o estabelecimento, entregou as encomendas e disse as pessoas mais próximas que dali em diante e até a cerimónia trabalharia apenas no vestido da filha. Como podem calcular dizer as pessoas mais próximas é o mesmo que dizer a toda a gente, e, passados alguns dias não se falava de outra coisa: o vestido da Inês. Todos comentavam. Bem, sejamos honestos, nem todos. Os homens andavam um pouco fora desta discussão e mais aplicados no campeonato, mas a conversa nas ruas durante uns tempos era dominada por aquele assunto. Discutia-se o estilo, o comprimento da cauda, o véu, quantidade de bordados e o... preço. O preço começou a ganhar destaque e não faltou muito até os homens ganharem interesse neste assunto e começarem a fazer apostas com os palpites das esposas.
Dona Rosa não ligou a nada disto, para dizer a verdade não soube nem a metade pois estava praticamente enclausurada na sua salinha de costura. Ela e a sua “singer”. O tempo foi passando e o dia do casamento chegou.
Os mirones reuniram-se em locais estratégicos para ver a noiva desfilar pela escadaria exterior da casa em direcção ao “Volvo” branco que o pai iria conduzir até a igreja. Mal a porta da casa se abriu ouviu-se um coro de suspiros e depois o silêncio. O vestido era magnífico. A noiva entrou no carro e partiu. A comitiva nupcial também seguiu o mesmo caminho mas voltavam meia hora depois para grande espanto dos populares. O rasca do noivo não apareceu. Fugiu entre a casa dos pais e a igreja. A indignação foi geral e a tristeza abateu-se pelo bairro, não tanto pela vergonha de Inês, que não era muito apreciada por aquelas bandas, mas, pelo vestido. Como podia um vestido tão bonito não ter sido abençoado? Ninguém conseguia perceber. A história foi abafada nos cafés e nas esquinas. Não mais se falou no vestido nem no assunto.
Inês ordenou que o queimassem. Dona Rosa recusou. Escondeu-o da filha na salinha e decidiu que aquele vestido ia ser usado! Pensou que nenhuma das suas clientes o iria querer – um vestido rejeitado, e, também não queria vender a ninguém dali perto pois a história iria chegar aos ouvidos da filha que provavelmente não iria aguentar outra humilhação.
Apanhou a camioneta para a cidade e levou o vestido escondido na cesta das compras. Vendeu-o clandestinamente a uma loja de artigos usados por um quinto do valor, com a condição de que nunca seria exposto na montra. Fez a dona da loja assinar um documento escrito. Não queria correr riscos. A filha não iria aguentar.
O vestido lá ficou esquecido no armazém. Dias. Meses. Anos. A dona da loja já tinha sido atirada para uma cama por uma doença galopante quando chegou para ajudar uma afilhada distante. Lurdinhas era uma moça vistosa da aldeia, ingénua e trabalhadora. Caiu na lábia do filho do alfaiate vizinho e mais tarde na cama dele. Perdeu-se de amores, sonhava acordada e mal abria os olhos para ver que ele não a queria mais e dormia com quantas pudesse apanhar.
Começou a sentir-se evitada e desprezada. Entrou em colapso, lembrou-se das mezinhas de tia Ermelinda e nem sequer pensou duas vezes. Em noite de lua cheia, foi ao armazém, pegou no embrulho, meteu-o no saco, e, caminhou para a praia. Estendeu o vestido, acendeu a vela de igreja, espetou-a na terra e queimou o papel com o nome do filho do alfaiate assim que ouviu as doze badaladas. Murmurou baixinho: ”Vais ser meu, Alberto. Vais ser meu, Alberto. Vais ser meu.”
O vestido foi arrastado pelas ondas, levou-o mar. Assim como levou Alberto, uns meses mais tarde, para a Venezuela em fuga de uma família desonrada e nunca mais ninguém lhe pôs os olhos em cima.
O vestido ainda anda por aí. Flutuando no oceano. Os outros morreram todos. Uma medusa translúcida. Uma caravela portuguesa de tule e folhos. Um fantasma do passado com assuntos por resolver.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Atrasado

Estou atrasado para variar. Ando sempre atrasado. Hoje acordei com uma daquelas sensações estranhas... Sabem quando estamos no banho a lavar o cabelo, a espuma vai descendo, tapa-nos os ouvidos, e, ouvimos tudo assim ao longe? Como se não estivéssemos realmente lá mas do outro lado de uma parede, num outro quarto a escutar as conversas alheias? Acordei assim. A ouvir ao longe aquela voz semi-italiana dos Texas a cantar uma música da qual não me recordo o nome mas que não me sai da cabeça. “you can say what you want but it wont change my mind, I feel the same about you…”.
Já passava da hora no despertador mas não me lembro de o ter ouvido tocar. Nem sei sequer de onde vem a música. Talvez do vizinho do lado? Não interessa. Virei-me para o lado para lhe dar um beijo de bom dia. Ela esta linda. Sempre foi assim. Tem a barriga ligeiramente descoberta e consigo ver a zona do umbigo...não resisti a tocar-lhe. É tão linda. Senti o arrepio a percorrer-lhe o corpo e terminar na cabeça com um ligeiro inclinar para a esquerda. “and you can tell me your reasons but it wont change my feelings…”.
Beijei-lhe o pescoço, e fiquei assim abraçado a ela. Estou atrasado. O despertador finalmente tocou. Agora está na hora de ela acordar. Vai abrindo os olhos com aquela preguiça matinal de gata. Eu vou dando beijos no pescoço que ela agora parece ignorar. O que será que eu fiz? Devo ter feito asneira da grossa ontem... Levanta-se sem me dirigir uma palavra e vai para a casa de banho. Falo para ela. Faço perguntas. Não me responde. Levanto-me para ir ter com ela e pedir desculpa. É sempre melhor pedir desculpa... mesmo sem saber porquê. Ela sai da casa de banho e vem directa a mim. Inclina-se e sinto o braço dela a atravessar-me para abrir a gaveta da mesinha de cabeceira. Sinto uma dor diferente e um leve estremecer da memória que me parte o coração em dois. Ela voltou para a casa de banho e eu segui-a. Atravessei a porta e compreendi. Estou atrasado. A vida passou por mim e eu ando sempre atrás dela.

quinta-feira, 29 de março de 2007

Despedida

Sete menos um quarto. Cheguei antes da hora combinada mas pode ser que tenha sorte...Tentei rodar a chave mas a fechadura não cedeu. Tentei novamente mas não deu sinal de fraqueza.
Trocou a fechadura, tinha de me sujeitar àquela humilhação. As mulheres são mesmo ... são todas assim. Um gajo dava-nos cabo dos cornos mas elas dão-nos cabo da cabeça. E sabem sempre onde atacar, nunca há cá kicks ou upercuts, é sempre em cheio, no centro, onde dói mais.
Ainda demorou mas lá veio abrir a porta. Um só movimento. Abrir a porta, afastar-se e apontar para o sofá. Mal dava para ver na penumbra que ela tinha o vestido verde. Não era uma roupa ao acaso, ficava linda com ele. Já se esta a ver que queria ficar por cima e sair em grande. Não me importei mas olhei demoradamente o contorno do peito, mais do que queria. Ela deu conta e lá no fundo ficou contente. Contente talvez seja uma má palavra! Ficou feliz. Mas fingiu não se importar, com aquele tão conhecido desprezo feminino. Apontou novamente para o sofá e desta vez segui com o olhar o braço até ao indicador. Lá estava em cima do sofá, onde tantas vezes estivemos juntos, a caixa com tudo o que era meu e estava em casa dela, tudo o que lhe dei e até algumas coisas que compramos juntos. A nossa vida de ano e meio. Uma caixa de cartão.
Perguntei se era só aquilo e ela acenou em confirmação.
- Pensavas que eram mais coisas?
- Sim. Pensei.
- Não te preocupes que não fiquei com nenhuma merda tua nem nada que te diga sequer respeito.
- Calma. Não precisamos de acabar assim.
- Não?
- Não. Podemos voltar a tentar...
- Como?
- Podemos voltar a tentar.

Os olhos ficaram maiores e brilhantes, e depois percebi que afinal não ia ter sorte. Não valeu a pena ter vindo mais cedo, não ia ter direito àquela última volta de despedida de que toda a gente fala. Será que alguém teve direito a ela?
- Sai daqui.
- Calma.
- Calma. Só sabes dizer isso? Sai daqui imediatamente! Sai!
Agarrei-lhe um braço e depois o outro. Tentei roubar um beijo mas só consegui uma ferida no lábio. Não foi mau. Há feridas que valem a pena e sempre era uma recordação.
- Larga-me! Besta!
Soltei-a, ela esfregou um pouco os pulsos e dirigiu-se para a porta e apontou novamente mas agora para o corredor do prédio, tentando manter-se inteira. Apanhei a caixa e fui para a porta.
- Queres mesmo acabar?
- Tu deves estar a brincar comigo. Sai da minha casa imediatamente! Nunca mais te quero ver.
- Adeus.
- Adeus, filho da puta.
Sai e ouvi a porta a bater num estrondo. Sete horas. Ainda dá tempo de ir a casa tomar um banho e trocar de roupa para ir para a despedida de solteiro. Pela noiva ainda se espera, mas pelo noivo...

quarta-feira, 21 de março de 2007

A vida fabulosa de Xana Darque

Foi no restaurante do Hotel Dolma que o nosso repórter encontrou a nova estrela em ascensão, para uma conversa informal onde são revelados em exclusivo alguns pormenores da vida desta diva do ambiente social português. Fique para descobrir.

PCN: Quando considera que começou exactamente a sua entrada no ambiente social?
XD: Bem...isso já foi há algum tempo...
PCN: Quando exactamente?
XD: Foi há cerca de dois anos. Nessa altura morava ainda em Viana do Castelo. Uma terra fascinante.
PCN: E o que aconteceu? Pode partilhar isso com os nossos leitores?
XD: Claro. Não é nenhum segredo. Nessa altura eu era um animal de festas, abusava um pouco do álcool e dos comprimidos. Foi uma altura especial para mim e nunca estive tão magra... (risos). Comecei a ter algumas alucinações.
PCN: Alucinações?
XD: Sim. A principio eram coisas poucas. Via objectos e pessoas que desapareciam sem deixar rasto. Coisas leves. Mais tarde comecei a ouvir vozes e as alucinações eram mais persistentes.
PCN: Isso não a incomodava?
XD: A mim? Não. Até fiz algumas amizades imaginárias (risos). Uma dessas foi a grande responsável por um dos meus melhores trabalhos!
PCN: O assassinato da Cabana?
XD: Sim. Foi realmente libertador.
PCN: E a sua família como reagiu a isso?
XD: Reagiu bem. A minha família sempre esteve no negócio da carne. O meu irmão goza até de uma certa fama local.
PCN: Fama local?
XD: Sim. É conhecido como o talhante de Viana.
PCN: Sim. Claro já ouvi falar dele. E os seus pais?
XD: Não conheço a minha mãe. Desapareceu quando eu era miúda. O meu pai actualmente esta reformado e cuida de uma pequena horta biológica junta a estrada. Adora ver passar os carros...
PCN: Ver passar os carros?
XD: Sim... eu também não percebo muito bem...mas acho que ele já tem idade para fazer o que lhe apetecer.
PCN: E os seus amigos como reagiram a este seu novo lado?
XD: os que me conheciam realmente bem não ficaram admirados os outros ficaram um pouco surpresos. No final de contas perdi alguns amigos que não conseguiram lidar bem com este meu novo estatuto social. Mas ganhei outros. Pessoas muito divertidas e influentes.
PCN: Influentes?
XD: Sim. Algumas pessoas com poder mas como é óbvio não vou citar nomes. Acho que seria indelicado.
PCN: E o que tem feito ultimamente?
XD: A minha última performance foi na Serra da Estrela. Atenção que estou a revelar isto em primeira mão. Ainda não foi lançado para os media. Foi um trabalho de grupo com alguns conhecidos e envolveu a famílias inteiras, neblina intensa e muito, muito gelo. Foi absolutamente fantástico. Acredito mesmo que atingi um outro nível.
PCN: E para o futuro?
XD: Sinceramente não sei. Tenho alguns planos. Talvez escrever um livro sobre as minhas experiências mas não sei. Isso já me parece muito batido. Vamos ver para onde a vida me leva.

segunda-feira, 12 de março de 2007

Às quintas

Correr de um lado para o outro, números, previsões, sempre com um sorriso nos lábios e um tique de aceno afirmativo na direcção de um chefe acéfalo ... uma merda! E no final do dia chegar a casa e não ter nada que me estimulasse. Até o sexo já estava na fase rotineira e não havia volta a dar-lhe. Podia tê-la mandado dar uma volta mas só o transtorno de procurar outra, para passadas umas semanas andar no mesmo... e como dizia o outro: “sexo é bom mesmo quando é mau”... Andava nisto há já algum tempo e não via maneira de sair, de escapar desta vida deplorável.
Há cerca de seis meses chegou lá ao escritório mais um funcionário lambe-botas, e, eu de início não vi a coisa com bons olhos – mais um paspalho para eu aturar, como se já não me chegassem estes – mas as coisas mudaram lentamente. Foi-se instalando uma cumplicidade baseada num ódio aquela existência miserável das nove às cinco. Um mês depois ele convidou-me para ir com ele, e, ver como conseguia aguentar os dias... Uma espécie de passatempo que praticava todas as quintas depois de jantar e tomar uns copos. Eu aceitei. Se funcionava para ele também devia funcionar para min.
Nesse dia quando abri a porta de casa era já uma pessoa diferente. Tudo mudou. Comecei a fazê-lo regularmente e a minha vida passou para um outro nível. A primeira a notar foi a minha namorada, que comentava entre suspiros suados que “o sexo nunca tinha sido tão bom”. No trabalho já nada me afectava e eu andava de um lado para o outro contando mentalmente o tempo que faltava para quinta feira. Fomos ficando mais cúmplices, o Alberto e eu, e, por vezes passavam dias sem trocarmos uma palavra. Não valia a pena. Se falássemos era só para falarmos daquilo, e, aquilo era nosso, só nosso. Fui promovido pouco tempo depois, tendo até o chefe elogiado a minha nova personalidade mais forte, mais segura de si. Fingi humildade e continuamos. A vida estava cada vez melhor. Decidi despachar a namorada. Já não tinha nada de novo para oferecer. Arranjei outras. A minha vida mudou. Foi pena aquela última ter conseguido escapar e nos ter denunciado... Foi pena...

terça-feira, 6 de março de 2007

Sete

...dias da semana,
...graus da perfeição,
...esferas,
...pétalas de rosa,
...vezes me tocou,
...ramos da árvore,
...portas de Tebas,
...cordas da lira,
...cores do arco-íris,
...céus,
...lágrimas derramadas,
...estrelas da Ursa Maior,
...mares,
...anões,
...vezes me agarrou,
...pecados mortais,
...facadas,
...não me toca mais.

sábado, 3 de março de 2007

00.04.23

00.00.00 – Avançar calmamente e resignadamente até meio da ponte, olhando, pelo canto do olho, o rio e os seus inúmeros pequenos pontos de luz reflectidos metros abaixo. 00.01.47 – Agarrar com força o metal frio e áspero do corrimão. Sentir a ferrugem em contacto com a pele. Fechar os olhos. Abrir os olhos. 00.02.25 – Fechar os olhos. Respirar fundo. Abrir os olhos. 00.02.29 – Sentir a brisa húmida no rosto. Olhar o rio. Fechar os olhos. Respirar fundo. Agarrar com mais força o corrimão. Sentir a ferrugem a desprender do metal velho e corroído. 00.02.54 – Tirar o sapato direito com o pé esquerdo. Tirar o sapato esquerdo com o pé direito. 00.03.10 – Colocar os sapatos num sítio visível. Endireitar o sapato esquerdo dois centímetros para o lado direito. 00.03.28 – Sentir o frio passar pelas meias. Encolher os dedos dos pés. Agarrar o corrimão. 00.03.35 Subir para o corrimão. 00.03.43 – Agarrar o cabo. 00.03.45 – Olhar o rio negro no horizonte. Fixar um ponto de luz. Respirar fundo. Seguir com o olhar um saco arrastado pela corrente. 00.04.06 – Hesitar. Recordar. 00.04.08 – Olhar para baixo. Olhar para o rio negro. Sentir o coração bater mais forte. 00.04.11 – Respirar fundo. Respirar. Inspirar. Expirar. 00.04.17 – Inclinar a cabeça para a frente. 00.04.18 – Recordar. 00.04.19 – Deixar-se ir. 00.04.20 – Recordar. O sorriso. O Sorriso. A chuva. As luzes. Guinar para a esquerda. O motion blur. Os vidros partidos. O sangue. A mão por cima da dele. O sangue. Os vidros. As sirenes. As luzes. O sorriso. A mão por cima da dele. 00.04.21 – O sorriso. Aquele sorriso. A mão. Aquela mão. A primeira palavra. O primeiro sorriso. O primeiro beijo. As luzes. O grito lancinante: “Cuidado!”. 00.04.22 – Branco. Negro. 00.04.23 – Tarde de mais...

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Reunião de família

Bem, lá vamos nós outra vez. Não sei porque razão continuo a ir a estas reuniões de família. Ou melhor, sei... A curiosidade é uma coisa terrível!
Da última vez que nos vimos ele estava fantástico, como sempre. Ela estava um pouco mais...mais... Como posso dizer isto? Nada me parece muito adequado, estou a falar da realeza no final de contas... Digamos que estava mais próxima da Vênus de Willendorf do que da Vénus de Milo... Acho que percebem aonde quero chegar e são dois tipos de beleza feminina perfeitamente legítimos...
Bem, é o que acontece a uma pessoa quando se habitua demasiado à boa vida. Boa comida, criados para isto, criados para aquilo...
Sim, tenho inveja! E depois? Eu sempre fui nobre, nunca me habituei a este estilo de vida que levo agora. Ela adora esfregar-me isso na cara! Adora, pois! Ela, uma rapariga do campo, habituada aos trabalhos domésticos é agora rainha do mais rico reino... e eu reduzida a uma parente pobre! A prima que eles convidam para os jantares de família por pena, ou ainda pior, por gozo.
Que culpa tenho eu de ele me ter deixado por uma morenaça de olhos verdes? Eu por acaso lá tenho culpa de ser assim tão pálida? Parece que não conhecem a história? A culpa não é minha!
Ela teve foi sorte! Teve uma fada sempre do lado dela e toda a gente sabe que com magia as coisas são sempre mais fáceis! Eu tive de lutar contra uma bruxa! Eu escapei à morte! Ela o que fez? Vestiu uma roupinha mágica, calçou aqueles sapatos horríveis e apareceu num baile! Só isso. E felicidade para sempre! Caramba! Há pessoas com sorte!
Eu lá tenho culpa que ele tenha roubado tudo para levar para os trópicos e se instalar confortavelmente com aquela rameira exótica? Ainda tentei manter a situação mas não consegui. Até a estúpida mina de ouro acabou. Nem mais uma pepita de ouro os anões conseguiram retirar de lá...
Fui obrigada a declarar falência, mudei-me para uma zona mais modesta e o palácio foi vendido em hasta pública. Advinhem quem o comprou? ELA! Claro! Só para mo atirar a cara! Onde acham que vou jantar hoje? Claro que é lá! Acreditam mesmo que é coincidência? Pois...
Tive de voltar para a floresta onde é tudo muito bonito e pacífico mas tentem tomar uma banho gelado as sete da manhã que a beleza e a paz desaparecem imediatamente. Gelado, sim... Estranhamente o gás canalizado ainda não chegou a minha área de residência. Só a minha área de residência!
Bom, estou a chegar. Já os vejo a porta, o “casal maravilha”. Vá lá, porta-te bem agora ou ainda és decapitada... não era a primeira e afinal sou só prima por casamento...
Porque é que eu ainda venho a estas coisas?Para ver que ela está cada vez mais GORDA!

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Gémeos

No dia 10 de Setembro Carlos foi atirado para a cama de um hospital com uma “doença do sangue”. Os pais entraram em choque, o seu único filho tinha leucemia. Laurinda e Afonso já tinham ouvido falar disso, já tinham visto até pedidos de pais desesperados na televisão – naqueles telejornais que duram uma eternidade e esmiuçam ao máximo a desgraça humana. Já todos vimos um desses, mas sofrer um caso assim era demais para aquele casal feliz. Sim, porque os há, os casais felizes, digo.
A vida é claro mudou: idas ao hospital, cuidados com tudo, assistência diária ao filho. Laurinda deixou o emprego e tinha os nervos em papa, parecia andar continuamente sobre o efeito de um ou dois “Valium”. Afonso continuou a sua vida de contabilista tentando manter a família, embora, no fundo já estivesse corroído pelo medo. O medo. Oh, sim, aquele medo que lhes infestava o quarto à noite, aquele cheiro a medicamentos e hospital que circulava pelo quarto como um presságio de morte, uma corrente de ar nefasto e estagnado. De manhã voltava-se a rotina diária e o sorriso de Carlos sempre ajudava a esquecer que em tempos as coisas foram melhores. Não demorou muito até Laurinda e Afonso, aparecerem eles próprios num desses noticiários com um pedido de ajuda. Gerou-se uma onda de solidariedade mas nenhum dador compatível surgia da faina e a situação complicou-se, pois Carlos enfraquecia de dia para dia. Os médicos não pareciam poder ajudar e saltavam de especialista para especialista até encontrarem o Dr. Freitas Mendonça, senhor de alta reputação académica. Ao que Laurinda e Afonso conseguiram perceber, em vez de perder um filho iriam ganhar outro.
“Uma vez que não conseguimos encontrar um dador compatível com o vosso filho podemos criar um, uma espécie de clone. Retiramos uma amostra do DNA do vosso filho, retiramos algumas imperfeições, e daqui a nove meses podem usar o cordão umbilical para salvar o Carlos” - explicou o senhor doutor.
Laurinda e Afonso nem podiam conter o entusiasmo, além de se salvar o Carlos, um filho perfeito, iriam ter um outro filho igualzinho a ele. Nem todos os casais eram assim abençoados, mas vendo bem as coisas, eles tinham sido até ao dia 10 de Setembro um casal feliz. Aceitaram de imediato, assinaram os documentos necessários e fotocopiaram os papeis importantes.
Carlos lá foi resistindo, e nove meses depois, mais coisa menos coisa nasceu Bernardo. Três quilos e seiscentas e cinquenta e três gramas de pura saúde. Os procedimentos para salvar a vida de Carlos seguiram o planeado e Carlos recuperou. Laurinda procurou novo emprego e as coisas foram voltando ao equilíbrio e até felicidade.
Os efeitos do tempo não tardaram a fazer-se sentir. Uma mancha de húmidade no canto da sala, uma foto de Bernardo aqui, um desenho no frigorífico, uma medalha de atletismo no móvel da sala, um equipamento de futebol, um diploma e mais outro, e as coisas foram mudando.
Com o passar do tempo Carlos foi sentindo que Bernardo estava a roubar parte do seu lugar naquela família mas associou tudo a ciúmes de irmão mais velho, e, Bernardo salvou-lhe a vida. Sem ele não teria sequer lugar naquela família!
Infelizmente, o carrossel não pára e as coisas foram mudando novamente... Mais fotos, diplomas, medalhas, taças foram surgindo naquela casa e foi necessário arranjar espaço, que Alfredo e Laurinda arranjaram retirando algumas coisas de Carlos. Coisas insignificantes. Mas Carlos reparou e no fundo do seu coração foi crescendo uma sensação de roubo. A vida dele estava a ser roubada! Ele podia ter sido tudo aquilo, ele podia ter tudo aquilo! Ele podia ser o Bernardo. Melhor, o Bernardo era ele. Porque é que ele tinha de ficar com os seus genes e não as suas imperfeições? Não era justo! Ele é que era o verdadeiro. O original. Porque é que ele não podia ser um atleta? Porque é que ele se constipava frequentemente? E a raiva foi crescendo, crescendo. Ficando aprisionada naquele coração e foi ganhando forças, minando todo o seu espírito e raciocínio. Tecia conspirações que invariavelmente terminavam com a morte do irmão, chegando algumas vezes a tentar por os seus planos em prática, sendo apenas impedido pelos seus pais. “Aqueles traidores egoístas!”, pelo menos foi isso que ele lhes chamou quando os enfermeiros o enfiavam na ambulância para o levarem para a “casa de repouso”.Laurinda e Afonso durante uns tempos tiveram alguma dificuldade com a sua decisão mas depois foram atingidos por uma conclusão apaziguadora: ”Tinham pelo menos um filho perfeito”.

O violino

Aquele violino velho, roçado, com manchas de madeira gasta era tudo para ele. Cuidava dele com todo o carinho que lhe era humanamente possível para um objecto que todos os outros consideravam inanimado. Era um filho. Era mais que um filho, pois esses não recebiam tanta atenção nem passavam tanto tempo com o pai como aquele violino. A esposa, Adelaide, sentiu ciúmes daquele violino, desde sempre, desde sempre... mas esses ciúmes morreram assim que ela encontrou outro homem para amar em segredo. Segredo, não será bem assim, porque ele sabia... Seria mais por força das conveniências... mas ficaram juntos. Mentiam a eles próprios, como todas as pessoas fazem quando se sentem encurraladas por aquele animal feroz que é a vida social, dizendo para si próprios à noite, quando pensavam não aguentar mais, que era pelos filhos e a coisa foi-se mantendo. Ela com o seu Ramos e ele com o seu violino. Aquele violino era tudo para ele. Era a sua primeira recordação de infância: o seu sexto aniversário! Nunca tivera dia mais feliz. Nem a primeira vez que dormira com uma mulher – graças ao violino – se aproximara daquela sensação. Reconhecia todas as curvas daquele violino, cada imperfeição que ele dizia fazer dele o violino mais perfeito do mundo. Fora ele que lhe arranjara a bolsa de estudos, era ele que lhe arranjava o salário. A sua vida entrelaçava-se nas cordas do violino. Claro que já tivera muitas ocasiões para comprar novos violinos, chegara até a comprar alguns que pairavam pelos cantos da casa, escondidos no sotão ou destruídos pelos filhos que os utilizavam como escape do ódio pelo “violino” ou até mesmo pelo pai, quem sabe? Desligou-se da vida, da família, dos amigos poucos que tinha. Aproximou-se do violino. Compunha obras fantásticas para o violino mas já raramente o tocava com receio de o estragar. Aquele violino era tudo para ele. A sua fama foi crescendo. O amor foi crescendo sem ninguém se aperceber. Fora ele que o acompanhara na infância. Na adolescência complicada de rapaz franzino e espinhoso, na juventude rápida. Esteve sempre com ele.E foi com ele que o encontraram morto com um tiro nas costas quando fugia de dois assaltantes que lhe queriam a carteira e o violino. A carteira ainda lhe tiraram mas o violino... Tiveram de lhe partir a mão em vários sítios no gabinete do médico legista.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

A aposta

- Tens a certeza que consegues?
- Tenho! Já te disse que ia até ao fim! Para de me chatear com isso. Vou para casa. Encontramo-nos no sítio combinado.
- Aposto que não o fazes!
- Cala-te! Já te disse para fechares a boca. Até amanha.
E despedindo-se com um acenar de cabeça, daqueles que se dão quando não queremos muita conversa, Filipe dobrou a esquina e seguiu para casa tal como tinha dito. João continuou o seu caminho, seguindo a Rua Mártires da Pátria, e com calma foi vendo as montras e olhando as pessoas de esguelha. Sentiu o desprezo habitual o que o fez sentir bem e sorriu discretamente enquanto caminhava.
Filipe seguiu rápido para casa. Ainda queria arrumar (ou organizar como ele dizia) umas coisas naquela noite. Não queria deixar nada para o dia seguinte nem para ninguém. Ao entrar olhou de relance para a casa e planeou a sua estratégia. Começou por arrumar a secretária, passou para os livros na estante colocando-os por ordem alfabética. Saltou para o quarto e passou a roupa a ferro, colocou a roupa no roupeiro (ou guarda vestidos, como ele dizia – resquícios de uma infância passada entre irmãs) e depois foi para a cozinha. Lavar a louça era sempre uma tarefa que ele considerava especialmente dolorosa... Para encher a banca com a louça que ele sujava eram precisos alguns dias... e isso era uma lembrança constante da sua solidão. Quando acabou foi para quarto novamente e mudou os lençóis e foi-se despindo até chegar ao chuveiro. Tomou um longo banho que o fez sentir melhor e mais quente.
João entrou em casa, acendeu a luz, ligou a televisão (não suportava aquele o silêncio na casa vazia) e foi-se acomodando, começando por retirar a incomoda gravata e os sapatos clássicos que faziam parte do conjunto a que ele chamava os “ossos do ofício” e que faziam sobressair o seu ar aristocrático. Encheu um copo alto com licor de café, acendeu um cigarro e aproximou-se da janela para observar a cidade. Saboreou o momento, o cigarro e o licor.
Deixou a sala e deslizou depois para o quarto, despiu-se, vestiu-se e enfiou-se na cama. Amanhã era um dia especial, sorriu e adormeceu.
O outro, Filipe, escreveu a carta, tal como tinham combinado, e foi-se deitar. Demorou a adormecer, afinal amanhã era um dia especial, e ele teve sempre dificuldades em adormecer antes dos dias especiais.
A manhã surgiu limpa. Os despertadores tocaram nas duas casas aproximadamente à mesma hora. Filipe desligou o seu e levantou-se, fez as coisas que sempre fazia de manhã. João simplesmente levantou-se e deixou o despertador ligado com o rádio a tocar, e fez as coisas que sempre fazia de manhã. João pegou na carta, na arma e nas balas. Filipe também pegou na arma , na bala e no envelope. Saíram, trancaram as portas e foram para o lugar combinado.
Chegaram quase ao mesmo tempo ao prédio abandonado na 5 de Julho, cumprimentaram-se com um aceno de cabeça, entraram e subiram as escadas em direcção ao terraço. Subiam, Filipe à frente e João atrás, lentamente mas com uma velocidade constante. Tinham tempo.
- Tens a certeza que consegues?
- Tenho! Já te disse que ia até ao fim!
- Aposto que não o fazes!
João já não respondeu, endureceu o olhar e continuou a andar. Sempre até ao terraço. Filipe abriu a porta com algum esforço, estava perra (anos e anos de abandono tem efeitos destes nas portas e nos corações, simplesmente deixam de funcionar correctamente.), e a luz do sol iluminou a entrada. João sentiu-se melhor, era sempre melhor fazer aquilo num dia de sol, pensou ele, se bem que pensou quase de seguida, se haveria de facto algum dia melhor para fazer aquilo. Dirigiram-se para o meio do terraço e colocaram-se um em frente ao outro. Viram que estavam muito próximos e recuaram alguns passos. João apertou a carta que trazia no bolso, com alguma força enquanto Filipe apenas confirmou que o envelope lá estava.
- Tens a certeza que consegues?
- Tenho! Cala-te com isso!
- Aposto que não o fazes!
- Cala-te! Anda, vamos acabar com isto.
- Muito bem, vamos.
João retirou a arma do outro bolso e meteu lá dentro uma bala enquanto Filipe pegou apenas na arma.
Não a vais carregar?
Já está carregada.
Andaste por aí com uma arma carregada?
Andei! Qual é o problema? Estás com medo que me magoe.
Calaram-se os dois e enquanto um esboçava um sorriso trocista o outro respondia com um sorriso quase infantil.
- Vamos?
- Sim.
Pegaram na arma e enfiaram o cano da arma na boca, olharam um para o outro, e contaram até três com os dedos e com alguns sons que já não soavam a nada. O vento assobiava e levantava as pontas de metal solto. Aos três premiram o gatilho. João conseguiu ver ainda no rosto de Filipe um sorriso de desprezo e troça...mas já não foi a tempo de parar aquele movimento fatal e caiu morto no chão. O clique vazio da arma de Filipe pareceu mais alto que a pequena explosão da arma de Filipe. Olhou para o corpo mole de João, largou no chão a bala que tinha guardada no bolso e largou no ar o envelope vazio que foi arrastado para longe pelo vento. Virou costas e dirigiu-se para a porta, dizendo em voz baixa:
- Ganhaste! Sempre foste até ao fim.
Sorriu, abriu a porta e desceu com calma.
Afinal, pensou ele, hoje é um dia especial.